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"A questão do tempo e da luta pelo tempo, para a esquerda, é absolutamente essencial." - Entrevista a André Saramago, segunda parte

André Saramago

Renato Guttuso, La Vucciria, 1974

















Falando de uma questão de reforma ou revolução, tendo como ponto principal o clima e a crise climática, é possível a conciliação de interesses económicos e ecológicos? Qual é o local da ecologia na disputa política?


Essa questão liga-se um bocadinho àquilo que estávamos a conversar há pouco [primeira parte da entrevista]. Porque, efetivamente, acho que a narrativa dominante é a de que ambiente e economia, ou bem-estar económico, não são compatíveis. Essa narrativa é profundamente problemática. Sempre que a Esquerda adota essa narrativa e diz à classe trabalhadora “se calhar precisamos todos de viver com um bocadinho menos por causa do ambiente”, a maioria das pessoas manda essa mensagem passear. Porque a maioria das pessoas tem estado a ser alvo de austeridade há imensos anos e o que têm é falta: falta de tempo livre, falta de serviços para as suas famílias, falta de acesso à cultura, falta de acesso a recreação e falta de bens materiais. Uma boa parte das famílias portuguesas vive com salário mínimo, ou pouco mais, que não cobre as suas despesas diárias, não cobre as suas despesas energéticas. A maior parte das pessoas passa muito frio no inverno e muito calor no verão. E, portanto, acho que esta narrativa ambiental liberal focada no consumo individual é extremamente problemática. E uma derrota para o movimento ambientalista.


E creio que, efetivamente, o desenvolvimento económico – não necessariamente no sentido em que é classicamente entendido como crescimento económico, etc. – mas o desenvolvimento económico no sentido de melhoria das condições de vida e da melhoria do acesso aos serviços e aos bens de que as pessoas necessitam para florescer enquanto indivíduos, não é necessariamente incompatível com a questão ambiental. Bem pelo contrário, na medida em que o atual modelo económico, de carácter capitalista e focado na produção descartável, esse sim é o grande problema ambiental. Enfim, eu menciono este assunto com frequência – que é um assunto que eu sinto que muitas vezes, mesmo à esquerda quando há um discurso ambiental, não assume a centralidade que deveria assumir – que é a questão da obsolescência programada. A forma como os nossos produtos eletrónicos, a nossa roupa, seja o que for, tudo isso hoje em dia, seja por via do marketing que está constantemente a tentar convencer-nos a comprar mais coisas e a última versão daquilo que já temos, seja por via do próprio desenho dos produtos que são feitos, por um lado, de forma a se estragarem facilmente e, por outro lado, a impossibilitarem a sua atualização sem ter de se descartar todo o produto, tem um impacto ambiental absolutamente impressionante. Em termos dos recursos que têm de estar constantemente a ser explorados para produzir esses produtos (automóveis, telemóveis, etc.), e em termos, depois, do lixo que se produz que, na sua maioria, é transportado para países do Sul Global, onde vai ter efeitos absolutamente nocivos do ponto de vista ambiental e do ponto de vista da saúde pública. No entanto, o capitalismo precisa dessa obsolescência programada para continuar a existir.  


« [...] esta narrativa ambiental liberal focada no consumo individual é extremamente problemática. E uma derrota para o movimento ambientalista. »


Portanto, eu acho que a obsolescência programada tem de ser um aspeto central da agenda da esquerda. E na crítica à obsolescência programada está-se a atacar o que eu creio ser um aspeto central do capitalismo moderno, que é a necessidade de estar constantemente a vender novos produtos, assim evitando crises de sobreprodução, pelo simples facto de os produtos serem constantemente descartáveis. Eu acho que a Esquerda precisa de atacar estes aspetos do capitalismo que são anti-ambientais e, acima de tudo, deslocar a luta pelo ambiente do consumidor para a produção. O custo é sempre colocado no consumidor: o custo de fazer a reciclagem, o custo de consumir coisas que tenham origens menos nocivas para o ambiente, etc. Tudo isso é colocado no consumidor quando deve ser colocado na produção. A responsabilidade por uma economia circular e a responsabilidade por uma economia de menos desperdício tem de ser colocada junto da produção. 

E outro aspeto que eu acho que a esquerda precisa de abraçar também, e que muitas vezes o movimento ambientalista tem uma postura um bocadinho “anti”, é a questão da ciência e tecnologia. Porque associam a ciência, a tecnologia e a modernidade à degradação do ambiente. E eu acho que isso é confundir as coisas. Acho que é confundir a ciência e a tecnologia com os usos que o capitalismo lhes dá. Portanto, a tecnologia e a ciência podem ser, e devem ser, e é esse o projeto socialista clássico, mobilizadas para a construção de uma sociedade socialista. Muitas vezes o movimento ambiental tem esta fantasia do retorno ao local e do retorno à terra, do retorno aos métodos tradicionais de agricultura ou de produção alimentar. Muitas vezes a Esquerda vai atrás desse discurso que tem uma visão romântica do rural e da ideia de que nós vamos todos produzir os nossos alimentos e que isso é que é a solução para o ambiente. Mas essa é uma visão profundamente desajustada ao que é a realidade de nós todos produzirmos os nossos alimentos. Que é uma realidade de muitas horas de trabalho com produção reduzida. Eu acho que o projeto da esquerda tem de ser um projeto de tecnologia e de futuro, tem de ser um projeto de aumento da produtividade e de redução do tempo de trabalho, de aumento do tempo livre. E que isso passa, não pela agricultura local (não quer dizer que não defenda pequenos agricultores face a grandes conglomerados capitalistas), mas acima de tudo por projetos de grande escala de produção alimentar de base tecnológica. A Holanda há uns anos conseguiu tornar-se num dos principais exportadores europeus de produtos agrícolas, fazendo agricultura vertical, agricultura hidropónica, de alta tecnologia, usando para tal apenas uma fração ínfima do solo e dos recursos que seriam necessários recorrendo a métodos tradicionais de agricultura.


« [...]o projeto da esquerda tem de ser um projeto de tecnologia e de futuro, tem de ser um projeto de aumento da produtividade e de redução do tempo de trabalho, de aumento do tempo livre. »

A Esquerda tem de resgatar esta visão de futuro do marxismo clássico, de aplicação da ciência e tecnologia ao aumento da produtividade de forma sustentável. Não pode, por isso, estar focada apenas numa visão de resistência. Tem de transmitir uma visão de futuro que passa, em grande medida, por reclamar a ciência e a tecnologia e pô-las ao serviço das populações e não meramente ao serviço do capital. Não deve confundir a ciência com capital – são coisas diferentes.



Como pensa o seu papel enquanto professor e intelectual, revisitando a ideia de Gramsci do “intelectual orgânico”? E como vê as universidades? São espaços democráticos ou espaços onde existem desigualdades profundas, não só entre alunos e professores, mas também entre a própria burocracia universitária e os seus trabalhadores, tanto professores como outros funcionários?


Essa é uma pergunta complicada, na medida em que eu sou um defensor de uma Universidade plural, de uma universidade que tenha efetivamente espaço para todas as vozes. E na minha própria forma de ensinar tento, na medida do possível, integrar esse espírito, raramente transmitindo as minhas opiniões, ao contrário do que estou a fazer aqui. Mas a minha função enquanto professor é tentar providenciar argumentos para posições que não são necessariamente as minhas, tentar demonstrar a lógica interna desses argumentos, independentemente de eu concordar ou não com ela. Portanto, eu sou defensor de uma Universidade que faça isso.

Não creio que a Universidade deva ser um espaço de doutrinação ideológica. A Universidade, acima de tudo, é um espaço em que se dão as ferramentas às pessoas para pensarem por si próprias e fazerem as suas próprias escolhas. Por duas razões. Uma, porque a partir do momento em que passemos a achar que a Universidade é um espaço de doutrinação e para transmitir a nossa perspetiva ideológica, de esquerda neste caso, reprimindo outras perspetivas, nada me garante que daqui a algum tempo não seja também a minha voz que será cancelada. Portanto, defender a minha voz também passa por defender a existência das outras, mesmo que não concorde com elas, E, dois, a luta pelo socialismo, tal e qual como eu estava a mencionar, é uma luta que passa por uma transformação cultural que, para ser real, tem de partir das pessoas. As pessoas têm de chegar a essa perspetiva socialista autonomamente, mais do que adotarem-na porque só ouviram essa perspetiva e não outras. Como eu acho que o projeto socialista, ou uma posição socialista, resulta do próprio processo histórico, e que os seus argumentos mostram-se como sendo mais válidos do que os de outras posições, a confrontação com várias outras perspetivas permitirá essa conclusão. Mas essa conclusão cabe a cada um fazer por si.


« [...] a luta pelo socialismo, tal e qual como eu estava a mencionar, é uma luta que passa por uma transformação cultural que, para ser real, tem de partir das pessoas. As pessoas têm de chegar a essa perspetiva socialista autonomamente »

Relativamente à questão da igualdade na Universidade, creio que houve um período em que estávamos a avançar no sentido de uma maior igualdade e de uma maior abertura da Universidade à sociedade e às várias classes sociais. Eu sou um produto disso. Tendo em conta o meu percurso pessoal e familiar, não sei se hoje em dia conseguiria tirar um curso no ensino superior, porque na altura beneficiei de apoios sociais devido à condição económica dos meus pais, e hoje em dia não beneficiaria deles da mesma forma. Ter esses apoios permitiu-me focar nos estudos e não ter de trabalhar ao mesmo tempo, o que me permitiu ser um bom aluno, o que me permitiu ganhar bolsas de mérito, e pagar as propinas, etc. Sem esses apoios teria de trabalhar para tirar um curso superior, o que significa que, se calhar, não conseguiria ser o mesmo tipo de aluno que fui. Mas creio que essa abertura da Universidade se está a fechar. Os apoios sociais têm sido mais reduzidos, são mais difíceis de aceder, e uma coisa que noto muito hoje em dia é que muitos dos alunos são eles próprios filhos de pessoas que já têm cursos superiores. Muitas vezes falamos em falta de diversidade, e falamos de questões de género, de etnia, de orientação sexual, que efetivamente faz todo o sentido e precisamos dessa diversidade no ensino superior, quer em termos de alunos, quer em termos de professores e funcionários. Mas há um elemento de diversidade que muitas vezes é esquecido, que é a questão da classe. Quando vemos o cenário no ensino superior vemos que a maioria das pessoas já são filhos de pessoas com alguma forma de ensino superior, e que já são de uma determinada classe social. Apenas um número mais reduzido de alunos, e principalmente de professores, são oriundos de classes sociais mais baixas, e eu acho que isso também faz com que o Ensino Superior acabe por se fechar, lá está, num determinado espaço cultural e social, e que perca a capacidade de ser a Universidade aberta que se quer que seja. 


« [...] há um elemento de diversidade que muitas vezes é esquecido, que é a questão da classe. Quando vemos o cenário no ensino superior vemos que a maioria das pessoas já são filhos de pessoas com alguma forma de ensino superior, e que já são de uma determinada classe social. »

A Universidade precisa de se diversificar de forma substancial a esse nível também. Atenção, não estou com isto a dizer que é culpa ou uma estratégia da Universidade, porque resulta do próprio desenvolvimento sociológico de Portugal nos últimos anos. Mas acho que, identificando essa questão, a Universidade tem a responsabilidade de ter uma política ativa nesse sentido. Porque a questão da classe é muito importante. Vejam bem: um aluno oriundo de uma classe mais baixa é um aluno que se calhar não passou uma boa parte das suas férias a viajar com os pais, é um aluno que se calhar nunca foi a museus, é um aluno que se calhar não tem muitos livros em casa, ou não tem o hábito de leitura em casa. É completamente diferente de um aluno que, felizmente, viajou com os pais para outros países, foram visitar museus, tem acesso cultural. Essas experiências têm impacto na forma da pessoa falar, nos horizontes que a pessoa tem… E essa forma de desigualdade é muitas vezes ignorada e invisível. E eu não sei qual é que é a resposta a isso, mas acho que as Universidades estão muitas vezes preocupadas com a questão de diversidade, mas estão preocupadas com o “póster”: qual é o poster que têm, qual é o aspeto das pessoas que estão nesse póster. E esta diferença não se vê. Portanto, eu acho que é um aspeto muito importante para se ter em conta também. Porque, lá está, isso é um aspeto essencial para lutar contra as tendências de extrema-direita que exploram, precisamente, estas desigualdades e a frustração que delas resulta.


Retomando um pouco a questão da cultura e transformações culturais e também relacionando, um pouco, as transformações culturais com as instituições do Estado, com as Universidades, e com todo o tipo de instituições que existem na nossa sociedade, olhando um pouco para Oriente e para o que foi a revolução cultural chinesa como algo que algumas leituras podem identificar como a origem (primeiro dentro do partido e de uma cúpula que seria a do Maoísmo e do líder Mao) de algo que as pessoas, de alguma forma, tomaram para si. Transformaram a revolução cultural segundo uma base que acabou por conquistar o poder, para fazer a revolução cultural desde baixo. Como interpretar esta experiência à luz desta transformação cultural que está propôr e desta estratégia com ênfase na cultura?


Eu lembro-me da aula em que nós falámos da Revolução Cultural e em que vocês pareciam mais entusiasmados com a Revolução Cultural do que eu. Se calhar é porque eu era o professor na sala [ri-se]. A questão da Revolução cultural é complexa, porque, lá está, como mencionei, sou muito influenciado pela linha do Bukharin, e essa linha bukharinista influenciou, também, Deng Xiaoping. E, portanto, o processo de abertura, de constitucionalização do estado que Deng Xiaoping tenta levar a cabo a dada altura. 

Eu não tenho uma visão positiva da Revolução Cultural Maoísta, porque acho que, apesar da sua mensagem ser esta ideia das bases voltarem a reclamar o movimento, em grande medida essa mensagem foi utilizada para lutas internas ao partido. Mao usou essa mensagem como forma de atacar a ala reformista de Xiaoping e outros, e de evitar efetivamente uma nova política económica na linha da que foi seguida na União Soviética durante os anos 1920. Contudo, a Revolução Cultural saiu do controlo da própria elite Maoista e descambou em violência iconoclasta. Portanto, a ideia da Revolução cultural enquanto destruidora das influências burguesas, lá está, levou a ignorar o que é valioso e o que deve ser retido dessa herança. O ataque aos intelectuais, o ataque aos cientistas e o ataque às heranças culturais, a destruição literal das heranças culturais chinesas, acho que é muito problemático. E, portanto, quando eu falo de transformação cultural – eu não uso intencionalmente o termo Revolução cultural para não confundir – estou a falar de uma Revolução Cultural na linha do Nikolai Bukharin, na linha de Alexander Bogdanov (que é a primeira pessoa a falar na ideia de Revolução Cultural), que contrasta com a linha de Mao. 

A ideia de Revolução Cultural de Bukharin e Bogdanov é uma que procura promover a construção do que eles chamavam de cultura proletária, ou seja,  uma cultura que realmente expressasse o coletivismo da classe trabalhadora e que fosse capaz de ter um espírito crítico face à sua própria cultura, mas também face a toda a herança cultural, inclusive da cultura burguesa. Trata-se de um movimento que procurava compreender, da herança cultural e do processo de aprendizagem da humanidade, inclusive da cultura burguesa, quais é que são os elementos que podem ser retidos para a criação de uma cultura proletária e socialista. E isto passa por um processo de cultivo de pensamento crítico e de pensamento autónomo, coisa que a dada altura a Revolução Cultural chinesa não está a fazer. O que a Revolução Cultural chinesa faz é produzir uma série de miúdos entusiasmados com o livro vermelho do Mao e a citar o Mao. Foi uma revolução que a dada altura torna-se também anticiência e anti-estado.


« [A ideia de Revolução Cultural de Bukharin e Bogdanovum] Trata-se de um movimento que procurava compreender, da herança cultural e do processo de aprendizagem da humanidade, inclusive da cultura burguesa, quais é que são os elementos que podem ser retidos para a criação de uma cultura proletária e socialista. »

Tenho muito mais simpatia pela ideia do Bukharin de uma Revolução Cultural que não destrói a herança cultural, mas, de certa forma, depura-a, ou seja, que é capaz de perceber o que dessa herança cultural pode ser usado como meio para construir o socialismo, nomeadamente o estado constitucional, a ideia de direitos fundamentais, de liberdade de expressão, etc. É lógico que depois o projeto de Deng Xiaoping, que se inicia por ser um projeto que tenta desenvolver as forças de produção por via de instrumentos de mercado e mobilizar os engenheiros e os cientistas para esse projeto, é um projeto interessante, uma espécie de nova política económica tentada nos anos 1920 na URSS como mencionei. Mas a abertura a instrumentos de mercado e a algumas reformas de caráter capitalista também tem efeitos profundamente negativos para a classe trabalhadora e levam a um aumento das desigualdades, levando a que esse projeto seja confrontado pelos trabalhadores e estudantes, com a exigência de que se torne mais aberto à população em geral, mais democrático e com maiores salvaguardas sociais, e Deng Xiaoping tem uma reação violenta a essa contestação em Tiananmen.


Enfim, é uma questão difícil de se debater. Mas a Revolução cultural da linha Maoista é claramente problemática. O socialismo tem de ser um projeto de construção e de futuro, e um projeto que seja capaz, também, de integrar várias classes. Não se esqueçam que há muita pequena burguesia, como normalmente é conhecida, que poderia aderir a esse projeto, se fosse verdadeiramente integrador dada a forma como hoje em dia é esmagada por grandes grupos económicos capitalistas. Se extremarmos demasiado as posições entre classes, não se consegue construir o projeto dessa forma inclusiva, nem o tal movimento de massas de que estávamos a conversar inicialmente. Por isso, não, a Revolução Cultural Maoista não é uma abordagem adequada.


« Se extremarmos demasiado as posições entre classes, não se consegue construir o projeto dessa forma inclusiva, nem o tal movimento de massas de que estávamos a conversar inicialmente. »


Para terminar… Com base nas estatísticas da participação dos jovens e da participação política que nos são apresentadas, como podemos encorajar a juventude a participar politicamente?


Eu devo confessar-vos que, enfim, nos últimos tempos não tenho conseguido acompanhar muito as discussões públicas, mas fiquei bastante impressionado quando me apercebi de que o Chega! tinha um enorme apoio entre a juventude. Surpreendido, talvez não tanto, se pensar mais aprofundadamente nisso. Mais uma vez, creio que representa, em grande medida, uma falha da esquerda em conectar-se com essas pessoas, com esses jovens, e em conseguir articular as suas vozes numa mensagem que lhes seja próxima. 

Esses jovens estão-se a mobilizar, atenção. Se calhar muitos deles eram pessoas que não votavam antes, ou que não se interessavam por política, e que agora estão a começar a votar. Estão é a votar no Chega! ou na Iniciativa Liberal - que é uma coisa de que eu gosto sempre, jovens precários a votarem na Iniciativa Liberal. 


Como fazer com que não se mobilizem nessa linha? Em grande medida passa por entender quais são os temas que realmente afetam essa parte da população e conseguir falar sobre esses temas. Acima de tudo, a esquerda precisa de fazer duas coisas. Por um lado, criar uma narrativa sobre a sua história, que tenha o tal lado solidário crítico sobre as experiências socialistas de forma a desconstruir a crítica fácil dos projetos socialistas que se tem estado a tornar tão prevalecente entre a juventude. Por outro lado, tem de ter uma visão de futuro que passe não apenas por dizer coisas como “queremos aumentar os salários” ou “queremos mais apoios sociais”, mas uma visão de futuro coerente e integrada de sociedade dentro da qual entrem coisas como “quais é que são as condições laborais das pessoas?”, “quais são as condições de família e tempo livre das pessoas?” e “quais são as condições ambientais?”. Portanto, eu acho que a esquerda precisa de uma narrativa coerente sobre esses pontos e que seja capaz de os unir, porque, neste momento, uma das coisas que às vezes sinto na juventude é que ela não se vê a si própria como fazendo parte de um movimento de massas. Muitas vezes está fragmentada: há pessoas que estão interessadas nas questões ambientais, ou que estão interessadas nas questões de género, ou nas questões de orientação sexual, por exemplo. Como encontrar uma narrativa transversal a todas essas pessoas e que seja capaz de as mobilizar em torno de um projeto futuro para o país, potencialmente com expressão internacional também, é absolutamente fundamental. 


« uma visão de futuro que passe não apenas por dizer coisas como “queremos aumentar os salários” ou “queremos mais apoios sociais”, mas uma visão de futuro coerente e integrada de sociedade dentro da qual entrem coisas como “quais é que são as condições laborais das pessoas?”, “quais são as condições de família e tempo livre das pessoas?” e “quais são as condições ambientais? »

Porque, vejam, em grande medida, dá-me a sensação que às vezes a camada da juventude que se mobiliza para ir votar no Chega!, são pessoas que estão com uma postura profundamente cínica e niilista acerca do mundo. Uma postura descrente. Não acreditam em nada, de facto. A única coisa em que acreditam é que os políticos são todos corruptos, querem todos “poleiro” e, a dada altura, votam naqueles que vão “partir isto tudo”. É uma postura profundamente niilista. É uma postura de “estamos todos tão frustrados que só queremos ver as coisas a arder. Não temos qualquer perspetiva de qual é a alternativa”. E eu acho que é preciso dar uma alternativa às pessoas e ter uma visão que seja capaz de criticar o estado atual de coisas, explicar porque é que o estado atual de coisas está como está, mas também criar um horizonte de esperança. 

Porque, muitas vezes, a esquerda também não tem esse horizonte de esperança. Muitas vezes, o horizonte de esperança da esquerda é muito contabilístico, é muito “aumentar o salário até ali”, “ter estes benefícios sociais” e não há um horizonte de esperança que tenha uma visão de futuro da sociedade que seja mobilizadora, em torno de questões ambientais, melhores condições de trabalho e, acima de tudo (que é algo que para as gerações mais jovens é muito importante e que as gerações mais velhas ainda não perceberam isso), a questão do tempo. As pessoas hoje em dia são mobilizadas não apenas para ganhar muito dinheiro, mas, acima de tudo, por se têm tempo. Se têm tempo para existir, viver e explorar os seus interesses. Porque o que é certo é que uma boa parte dos jovens hoje em dia têm mais educação do que há umas gerações atrás. E nós passamos pela escola pública, em que nos é cultivada esta ideia de ter interesse nisto e naquilo, e, de repente, saímos para o mercado de trabalho e não temos tempo de ter interesse em nada, e tornamo-nos completamente frustrados com as existências que levamos.


« [...] acima de tudo (que é algo que para as gerações mais jovens é muito importante e que as gerações mais velhas ainda não perceberam isso), a questão do tempo. As pessoas hoje em dia são mobilizadas não apenas para ganhar muito dinheiro, mas, acima de tudo, por se têm tempo. Se têm tempo para existir, viver e explorar os seus interesses. »

Acho que a questão do tempo e da luta pelo tempo, para a esquerda, é absolutamente essencial e, por isso, é que eu não acredito muito na esquerda que quer voltar ao mundo pequenino, rural, local. Eu sou da esquerda que quer desenvolver tecnologia para termos mais tempo livre, para meter robôs a fazer coisas [ri-se]. Portanto, eu acho que a luta pela questão do tempo, que depois se liga às outras lutas todas (à questão ambiental, à questão da família e à questão da recriação e da cultura) é absolutamente central. Não é por dizer que vão ganhar mil euros em vez de ganhar oitocentos que se vai conseguir mobilizar as pessoas que estão profundamente frustradas e que só querem ver as coisas a arder.





 

Sobre o entrevistado:

André Saramago é Professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutorado em Política Internacional pela Universidade de Aberystwyth, é autor de Grand Narratives in Critical International Theory (Routledge, 2024), e co-editor de Non-Human Nature in World Politics: Theory and Practice (Springer, 2020). A sua investigação interessa-se pela intersecção entre a teoria internacional crítica, a sociologia histórica, estudos científicos e ambientais e estudos da Ásia Oriental.

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Revista A Salto, 2021

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