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Cidadania, desigualdades e a escola pública em Portugal


I


Em Cidadania e Classe Social, o sociólogo britânico TH Marshall (1967) identifica três dimensões fundamentais do moderno conceito de cidadania: a civil, a política e a social. O elemento civil é caracterizado pelos direitos individuais básicos numa democracia liberal: a liberdade de imprensa e de expressão, a liberdade religiosa e de associação, o direito à propriedade e à justiça. A dimensão política da cidadania encontra-se relacionada com o direito a participar no exercício do poder político e o direito de voto. O aspecto social da cidadania remete para a institucionalização da garantia de um nível mínimo de bem-estar económico que assegure a possibilidade a todos os membros de uma comunidade política participarem de forma mais completa na vida dessa mesma comunidade. A cada uma destas dimensões de direitos, correspondem instituições específicas (tribunais, parlamentos ou serviços de protecção social, por exemplo) com percursos também eles particulares. Tomando como referência o caso britânico, Marshall argumenta que a extensão dos direitos de cidadania teve lugar de forma gradual e em etapas sucessivas. O século XVII terá sido o século das lutas pelos direitos civis. O século XIX o das batalhas pelos direitos políticos. O século XX o da conquista dos direitos sociais. Publicado pela primeira vez em 1950, Cidadania e Classe Social, desenhava um esquema optimista e confiante no progresso social, não obstante as catástrofes económicas, políticas e militares observadas na Europa ao longo dos anteriores trinta anos. O Reino Unido preparava-se então para construir o seu estado providência, estendendo de forma significativa a cobertura do sistema de protecção social àqueles que se encontravam fora do mercado de trabalho, instituindo o serviço nacional de saúde, ampliando a provisão de habitação pública, universalizando o acesso à educação e ao ensino superior, apenas para referir alguns dos seus aspectos mais significativos. A construção do consenso social e político no pós-guerra ancorava-se, no quadro de uma configuração geopolítica específica, numa política de pleno emprego, provisão pública de bens essenciais e controlo estatal de amplos sectores da economia.


Esse projecto de articulação entre economia de mercado e direitos sociais, que pressupunha a construção de sociedades mais igualitárias, começou a entrar em crise no início dos anos 1970 para se desmoronar mais ou menos definitivamente a partir de meados da década de 1990. O crescimento das desigualdades sociais nos últimos trinta anos, como consequência mais evidente da erosão do estado social, encontra-se amplamente documentado. A mudança do contexto político permitiu então reconsiderar a própria história do desenvolvimento da cidadania e dos direitos sociais. Talvez uma das mais esclarecidas análises sobre esse processo possa ser encontrada num livro de 1991, The rethoric of reaction: perversity, futility, jeopardy [O pensamento conservador: perversidade, futilidade e risco, Lisboa, Difel, 1995], da autoria de Albert O. Hirshman. Num momento de ataque político e ideológico ao estado social construído no pós-guerra, Hirshman mostrava com clareza, concisão e verve como este ataque não era um fenómeno novo. Cada uma das vagas de direitos de cidadania identificadas por Marshall havia sido, a seu tempo, objecto de contestação por sucessivas gerações de intelectuais conservadores. Mais do que uma narrativa sequencial de progressos sucessivos e cumulativos em direcção a sociedades mais justas e democráticas, a história dos direitos de cidadania é reconstruída em The Rhetoric of Reaction como uma luta entre um movimento progressista de expansão dos direitos e uma reacção conservadora que procurou com, recurso a poderosos arsenais argumentativos, limitar, conter, diluir e reverter esses impulsos emancipadores. Focando-se na reacção conservadora à revolução francesa, à extensão do sufrágio e à formação do estado social, entendidos como os três processos definidores de cada uma destas vagas de cidadania, Hirschman percorre então uma notável galeria de referências do pensamento conservador, de Edmund Burke a Alexis de Tocqueville, de Gustave Le Bon a Milton Friedman, passando por Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, para identificar as estruturas fundamentais da retórica reacionária: a futilidade, a perversidade e o risco.


« Mais do que uma narrativa sequencial de progressos sucessivos e cumulativos em direcção a sociedades mais justas e democráticas, a história dos direitos de cidadania é reconstruída em The Rhetoric of Reaction como uma luta entre um movimento progressista de expansão dos direitos e uma reacção conservadora que procurou com, recurso a poderosos arsenais argumentativos, limitar, conter, diluir e reverter esses impulsos emancipadores. »

Se a análise de Hirschman permitiu reconstruir um quadro conflitual do desenvolvimento da cidadania moderna, entendida mais como o resultado de lutas sociais e políticas e não tanto como uma sequência mais ou menos linear do progresso social – resultante do desenvolvimento tecnológico e do crescimento económico, segundo uma certa sabedoria convencional de sabor levemente paternalista – um olhar mais atento às trajectórias da cidadania noutros contextos permite complexificar um pouco esta narrativa. Será suficiente a este respeito recordar que nos Estados Unidos da América, por exemplo, se verificou uma dissociação histórica entre participação política e provisão social. A formação dos direitos de cidadania excluiu, em larga medida, muitas das dimensões da cidadania social, tornando-se a noção particularmente problemática quando cruzada com dimensões de género e raça (Fraser e Gordon, 1992). Se olharmos para o caso português verificamos que direitos civis, políticos e sociais não foram institucionalizados sequencialmente, após um longo processo de maturação de cada um deles. Foram implementados em bloco, depois da revolução de 25 de Abril de 1974, que pôs termo a um regime político que durante quase cinquenta anos impediu a liberdade de expressão e organização sindical, limitou o pluralismo partidário, o direito de voto e a participação política, bloqueou o desenvolvimento de políticas sociais redistributivas e universais.


A construção do Estado Social português caracterizou-se, atendendo a esta cronologia, por um duplo constrangimento estrutural. Por um lado, começou a ser instituída num contexto internacional adverso, quando noutros países europeus se iniciava um movimento de retrocesso nos direitos sociais e uma profunda transformação da economia política do pós-guerra. O processo de integração na União Europeia, implicando uma maior aproximação aos modelos dominantes nos países do centro, precipitou a reconfiguração – chamemos-lhe neoliberal por economia de tempo – de um Estado Social que se encontrava ainda em formação. Três intervenções do FMI, com a revisão constitucional de 1989 pelo meio, permitem balizar o processo. Por outro lado, o legado autoritário limitou de forma significativa a forma como as diferentes instituições estatais e os seus agentes entenderam a provisão pública universal dos direitos sociais. Na realidade, como assinalou Boaventura Sousa Santos, a revolução, apesar de ter destruído as características mais obviamente fascistas do Estado Novo, deixou praticamente intacto o aparelho de Estado “com os seus cinquenta anos de ideologia, recrutamento, formação e comportamento autoritários” (Santos, 1992, 19). Daqui resultou um modelo de exercício do poder estatal definido pela discrepância entre a letra da lei e a sua aplicação prática. A característica que, na realidade, continuando com Boaventura Sousa Santos, “mais inequivocamente distingue o Estado português de um Estado-Providência é o facto de a administração pública ainda não ter interiorizado inteiramente a segurança social como um direito, continuando em alguns aspectos a considerar que se trata de um favor concedido pelo Estado, tal e qual como se pensava durante o regime autoritário do Estado Novo” (Santos, 1992, 48-49).


« ... o legado autoritário limitou de forma significativa a forma como as diferentes instituições estatais e os seus agentes entenderam a provisão pública universal dos direitos sociais. [...] o facto de a administração pública ainda não ter interiorizado inteiramente a segurança social como um direito, continuando em alguns aspectos a considerar que se trata de um favor concedido pelo Estado [...] »

Seguindo esta leitura, é difícil pensar a morfologia do Estado Social português contemporâneo sem atender aos quadros normativos e organizacionais heterogéneos que coexistem no interior da forma estatal, e a sua relação com outras forças sociais e económicas. Observando o alcance da provisão pública em diferentes esferas dos direitos sociais verificamos processos e resultados bastante diversos e, em certa medida, contraditórios. A dimensão do parque habitacional público em Portugal é muito inferior ao que existe em países como a França ou a Holanda. Por contraponto, apresenta dos valores mais elevados do acesso à propriedade de habitação própria, que, paradoxalmente, funciona para muitas famílias, como uma forma de fuga à dependência do mercado. Na saúde, apesar dos défices crónicos de financiamento e da oposição histórica de algumas forças políticas à criação do Serviço Nacional de Saúde, Portugal lidera rankings internacionais na redução da taxa de mortalidade infantil ou das taxas de vacinação. O estado português não se revelou, todavia, capaz de implementar um sistema de cuidados de saúde primários considerado satisfatório pela maioria dos utentes. O elevado número de utentes sem médico de família ou os tempos de espera nas consultas da especialidade são dois dos indicadores mais precisos destas limitações. No campo da segurança social, sabemos que a taxa de pobreza duplicaria sem as transferências sociais. Apesar disso, é forçoso reconhecer como uma medida emblemática como o Rendimento Social de Inserção tem sido objecto de fortes ataques políticos, que, note-se, não são recentes. Mais ainda, sabe-se como os agentes responsáveis pela sua atribuição tendem a olhar com desconfiança para os beneficiários desta medida, pautando a sua acção muitas vezes pela discricionariedade e por uma interpretação policial das suas funções, práticas que se tornam ainda mais agressivas perante beneficiários provenientes de grupos étnicos minoritários ou classificados como não merecedores (ERRC/Númena, 2007).


Em Portugal, cada um destes terrenos de intervenção do Estado Social tem sido objecto de intensas lutas sociais, políticas e intelectuais ao longo dos últimos cinquenta anos. Para se compreender a natureza destes conflitos – os argumentos esgrimidos, as instituições envolvidas, os actores mobilizados – seria necessário revistar a história do salário mínimo nacional, do rendimento social de inserção, da legislação sobre as rendas ou do plafonamento da segurança social. A lista é extensa. Mas talvez nenhum debate mobilize um maior conjunto de energias do que aquele que quotidianamente se projecta sobre o sistema público de educação. Uma rápida passagem pelos jornais e pelos telejornais ajuda, no essencial, a imaginar um sistema disfuncional em crise permanente. Construção dos programas e dos currículos escolares, a utilização e provisão dos manuais, violência, indisciplina e bullying, a autoridade (ou a falta dela) dos professores, as suas condições de trabalho e os seus salários, a relação entre escola e família, a tensão entre o ensino técnico e o ensino humanístico, as condições dos equipamentos e instalações escolares, as cantinas e as actividades extra-curriculares, os rankings escolares e o cheque-ensino, os sistemas de avaliação, os modelos pedagógicos, os exames nacionais, as condições de acesso ao ensino superior, as propinas e a acção social escolar são apenas alguns dos temas, sem ser exaustivo, que integram uma agenda noticiosa e política que torna difícil situar de forma clara os termos em que o problema é definido pelos diversos intervenientes, os quadros normativos dos quais partem e dos pressupostos que orientam as respectivas tomadas de posição.


Fazer sentido destes conflitos em torno do sistema educativo obriga, por conseguinte, a integrá-los numa história mais longa. Antes de ser definida como um direito social, a extensão da escolaridade em vários países, esteve associada a factores de natureza política e económica. Em estados caracterizados por uma forte diversidade religiosa, cultural, étnica ou linguística a construção dos sistemas de ensino foi fundamental para consolidar um certo sentido de identidade nacional e cultura partilhada. Noutros contextos, a escolarização das populações deu-se no quadro de processos de rápido desenvolvimento industrial, que exigiam trabalhadores alfabetizados. Foi sobretudo com a institucionalização do Estado Social no pós-guerra que a relação entre os sistemas de ensino e as desigualdades se tornou um tema mais central. Desde então, espera-se que os sistemas de ensino também sejam instituições de promoção do mérito e da mobilidade social. É nesse terreno que o problema da relação entre sistemas de ensino e desigualdades sociais pode ser colocado.




II


É quase consensual que a elevação dos níveis de qualificação académica da população residente em Portugal se encontra, a par do Serviço Nacional de Saúde, entre as maiores conquistas da democracia. Não é estranho que assim seja. Apesar de conhecidos, vale a pena insistir na apresentação de alguns dados (construídos a partir de estatísticas do INE e da Pordata). Em 1970, a taxa de analfabetismo em Portugal era de 25,7%. Nesse mesmo ano apenas 0,9% da população tinha concluído o ensino superior. Em 1981, 43,7% da população, mesmo que soubesse ler, não havia concluído qualquer nível de escolaridade. Portugal era então, como foi ao longo de todo o século XX, o país europeu com os piores indicadores no campo escolaridade básica. Em 1910, por exemplo, apenas 18,7% da população portuguesa havia concluído o ensino primário. Nos Estados Unidos da América esse valor, para esse mesmo ano, era de 97%. Na Dinamarca era de 65,8%, em França 85,7%. Noutros países do Sul da Europa, os níveis de conclusão do ensino primário eram mais do dobro dos observados em Portugal: Espanha, 35,3%, Itália, 44,6%, Grécia, 40,2%. Nem a República, nem, obviamente, o Estado Novo contribuíram para alterar este estado de coisas de forma relevante (Justino, 2014) .


« Em 1970, a taxa de analfabetismo em Portugal era de 25,7%. Nesse mesmo ano apenas 0,9% da população tinha concluído o ensino superior. Em 1981, 43,7% da população, mesmo que soubesse ler, não havia concluído qualquer nível de escolaridade. »

Em 2011, os dados do Census indicavam que o analfabetismo se havia transformado numa categoria residual. A percentagem de indivíduos com um diploma do ensino superior ascendia a 13,8%. Quando analisamos os dados para outros níveis de escolaridade, eles são semelhantes. A população com o ensino secundário era de 15,7%, contra os 5,9% registados em 1970. Ao longo da última década, esta tendência de qualificação escolar da população residente acentuou-se em todos os níveis de ensino. Torna-se particularmente impressionante se a observamos a partir de diferentes coortes etárias. Em 2021, mais de 21% da população tinha completado o ensino secundário. Esse valor ascendia a 62% entre aqueles que tinham entre os 30 e os 34 anos. No final de 2021 a taxa de escolaridade do ensino superior da população residente em Portugal, entre os 30 e os 34 anos, atingiu os 44%, um crescimento significativo em relação aos 26,7% de 2011. Em 2020, Portugal registou um novo máximo no número de diplomados, com os estabelecimentos de ensino superior a emitirem cerca de 85 000 diplomas. Para o ano lectivo de 2021-22 estimava-se que as instituições de ensino superior público e privado iriam registar mais de 100 000 novas inscrições. Em 2015 encontravam-se inscritos em instituições do ensino superior 358 000 estudantes. Em 2020 esse número ascendeu aos 400 000. Em 1970, eram apenas 50 000 os inscritos no ensino superior.


À medida que subimos nos níveis de ensino os resultados são ainda mais expressivos. Em 1970 tinham sido reconhecidos pelas universidades portuguesas 60 doutoramentos. Desses, 23 haviam sido realizados em instituições portuguesas e 37 no estrangeiro. Apenas quatro mulheres receberam os seus diplomas nesse mesmo ano. Em 2015, foram reconhecidos por instituições nacionais 2969 doutoramentos, invertendo-se a relação entre instituições nacionais (onde foram realizados 2351) e instituições académicas estrangeiras (onde foram realizados 618). A mudança é ainda mais significativa se considerarmos a dimensão de género. Desse total de 2969 doutoramentos, 1382 foram atribuídos a homens, ao passo que foram 1587 as mulheres que concluíram esse ciclo de estudos em 2015.


De facto, para além do crescimento substancial do nível de qualificação da população residente em Portugal face ao observado no início dos anos 1970, talvez a transformação mais profunda observada no ensino superior seja relativa às desigualdades de género. As mulheres não apenas atingiram a paridade no acesso ao ensino superior e no número de diplomados, mas, partindo de uma situação bastante mais desfavorável – em 1970 a taxa de analfabetismo entre as mulheres (31%) era significativamente mais alta do que entre os homens (19,1%) – ultrapassaram os homens no que diz respeito ao número de indivíduos que conclui o ensino secundário, entra no ensino superior, conclui o ensino superior e, inclusivamente, termina os seus doutoramentos. Os resultados desta crescente feminização do ensino não deixaram também de se fazer sentir nas carreiras docentes do ensino superior. No ano lectivo 2015/16 a taxa de feminização do ensino superior era de 44,5%, ou seja, de um total de 32580 indivíduos que compunham esta categoria, 14483 eram mulheres.


« As mulheres não apenas atingiram a paridade no acesso ao ensino superior e no número de diplomados, mas, partindo de uma situação bastante mais desfavorável – em 1970 a taxa de analfabetismo entre as mulheres (31%) era significativamente mais alta do que entre os homens (19,1%) – ultrapassaram os homens no que diz respeito ao número de indivíduos que conclui o ensino secundário, entra no ensino superior, conclui o ensino superior e, inclusivamente, termina os seus doutoramentos. »

Em síntese, se atendermos ao ponto de partida do país, verificamos durante o período democrático um crescimento substancial do nível de escolarização da população residente no país. Esse incremento ancorou-se num investimento contínuo em meios humanos e materiais aplicados no sistema de ensino, mensurável, por exemplo, na expansão de rede de escolas e de universidades, na generalização, ainda que incompleta, das creches e jardins de infância, no aumento do número de docentes, na ampliação dos serviços de acção social escolar, na distribuição gratuita de manuais escolares. Analisando a evolução da despesa pública com a educação em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) verificamos que entre 1972 (1,2%) e 2017 (3,7%) o investimento público em educação cresceu de forma muito expressiva. Mais ainda, se olharmos para esse mesmo investimento do ponto de vista do peso da educação na despesa pública total – que em 2017 foi de 10,9% – constatamos que esse incremento foi ainda mais claro, revelando o papel determinante das políticas públicas na transformação do sistema de ensino em Portugal e na qualificação da população residente.


O incremento destes indicadores estará seguramente ligado aos processos de terceirização da economia ou à procura de um novo modelo de especialização da economia portuguesa. Revela, contudo, muito pouco sobre a forma como a instituição escolar tem contribuído, no Portugal democrático, para o combate às desigualdades sociais, que, sublinhe-se, são as mais altas na zona euro. Talvez o melhor ponto de partida para problematizar esta relação seja o da análise das retenções no ensino em Portugal. Na realidade, olhar para a retenção permite observar as estratégias usadas pela a escola para classificar e hierarquizar estudantes provenientes de diferentes categorias sociais, e perceber a forma como os distribui por diferentes trajectórias sociais. Permite ainda reconsiderar de que modo os diferentes agentes da instituição escolar interiorizaram, ou não, a ideia do acesso universal à educação com um direito social básico.


Os resultados de dois estudos ajudam a situar o debate. O projeto aQeduto, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, analisou os resultados dos estudantes portugueses na Avaliação PISA entre 2003 e 2012, para responder à questão de saber se “Chumbar melhora as aprendizagens?”. Comparando os resultados dos estudantes nacionais com os de dez países europeus, o estudo identifica diferentes abordagens em relação à retenção. Por um lado, encontramos países como a Finlândia, Suécia, Polónia, Dinamarca, República Checa e Irlanda onde quase não se chumbam os estudantes. Por outro lado, temos países que usam a retenção como um instrumento pedagógico privilegiado: Holanda, França, Espanha, Portugal e Luxemburgo. Portugal não só se encontra entre os segundos, como é o país que mais chumba em toda a Europa. No período em causa era, a par de Espanha, o único onde as retenções continuavam a crescer. Mais ainda, é aquele que mais chumba os seus estudantes no início do percurso escolar. Em 2012, cerca de 35% dos estudantes tinham chumbado pelo menos uma vez até ao nono ano; 23%, cerca de um em quatro, repetiram o ano pelo menos uma vez até ao sexto ano. O estudo apresenta ainda outros dados interessantes. Conclui, por um lado, que chumbar não melhora as aprendizagens. Os alunos que são retidos apresentam resultados significativamente mais baixos do que os seus colegas que nunca foram retidos. Conclui, por outro lado, que para além de ineficiente, é também a medida dispendiosa. Ineficiência, desperdício e, poderíamos acrescentar, desigualdade. Em relação aos testes de PISA o relatório apresenta um dado menos inovador mas ainda assim esclarecedor. A retenção encontra-se fortemente associada ao Estatuto Socioeconómico e Cultural das famílias: 87% dos alunos que chumbam são provenientes de famílias de estratos socioeconómicos mais baixos.


« Portugal [...] é o país que mais chumba em toda a Europa. No período em causa era, a par de Espanha, o único onde as retenções continuavam a crescer. Mais ainda, é aquele que mais chumba os seus estudantes no início do percurso escolar. »

Um outro estudo, de 2016, Resultados Escolares e Desigualdades Socioecónómicas II, publicado pelo departamento de estudos do Ministério da Educação acrescenta algum detalhe ao retrato. Focando-se nos percursos de sucesso dos alunos do segundo ciclo (aqueles que no ano lectivo de 2014/15 obtiveram positiva nas duas provas finais do 6.º ano de Português e Matemática, após um percurso sem retenções no 5.º ano e no 6.º ano) o relatório conclui que existe uma forte correlação entre os resultados escolares e origem social dos estudantes. O estatuto socioeconómico é aqui medido a partir de uma combinação entre capital cultural da família (cujo indicador é o nível de escolaridade da mãe) e o seu nível de rendimentos (cujo indicador é ser beneficiário, ou não, de um dos escalões de apoio da Acção Social Escolar). Entre os alunos cujas mães têm uma licenciatura a percentagem de percursos de sucesso é de 80%. Este valor cai sucessivamente com a redução da escolaridade da mãe. Entre aqueles cujas mães apenas concluíram o ensino secundário os percursos de sucesso são de 56%. Para os alunos cujas mães possuem um diploma do ensino básico, os percursos de sucesso baixam para os 41%, atingindo valor mínimo de 26% entre os que provêm de famílias onde a mãe apenas concluiu o primeiro ciclo. Esta disparidade de resultados mantém-se quando os percursos de sucesso dos estudantes são cruzados com o nível de rendimentos das suas famílias. Entre os alunos que não recebem qualquer tipo de apoio da Acção Social Escolar, a percentagem de trajectórias de sucesso é de 63%, baixando para os 43% entre os alunos do escalão B, para atingir os 27% entre os alunos do escalão A, aqueles que recebem mais apoios e são provenientes de meios sociais mais desfavorecidos.


A retenção não opera, contudo, de forma isolada. Ela é apenas a expressão mais evidente e precoce de um conjunto de práticas pedagógicas, disciplinares, modelos de avaliação e organização escolar (que vai desde a distribuição dos horários à construção das turmas, por exemplo) que contribuem para a reprodução de hierarquias sociais e culturais. A cada uma destas dimensões da ordem escolar correspondem obstáculos e filtros sociais sucessivos que vão operando uma selecção dos estudantes, canalizando indivíduos provenientes de diferentes sectores do espaço social para destinos escolares diversificados – uns para os patamares superiores da instituição universitária, outros para os politécnicos, alguns para o ensino técnico-profissional, muitos para o abandono escolar – eles próprios conducentes a modalidades de integração profissional e oportunidades de vida profundamente desiguais. Quanto mais próxima a cultura da família de origem estiver da cultura escolar maior será a probabilidade dos seus herdeiros terem trajectórias escolares bem sucedidas. Consubstancia-se assim, se quisermos colocar a questão de forma bastante directa, a transformação do privilégio social e do arbítrio cultural numa hierarquia do mérito e do talento.


A persistência da retenção no interior do sistema educativo português revela, antes de mais, o carácter desigualitário da escola contemporânea: são sobretudo os estudantes provenientes de meios socioeconómicos mais frágeis os que acabam por chumbar, uma ou mais vezes, durante o seu percurso escolar. Mas para além desta avaliação, digamos objectiva, essa classificação escolar negativa precoce gera, frequentemente, uma interiorização de um certo sentido de fatalidade que, reproduzindo disposições familiares (“o melhor é ires trabalhar que isto não é para gente como nós”) e articulada com um cálculo de probabilidades de custos e benefícios, conduz a uma auto-exclusão de muitos de percursos escolares mais prolongados. Quando pensados à luz de uma comparação internacional, os dados sobre a evolução dos níveis de escolarização podem ser interpretados como um sinal de progresso e aproximação aos padrões europeus. Quando lidos à luz das desigualdades sociais internas ao espaço social português e pensados a partir de outros indicadores, verificamos que a escola em Portugal se encontra ainda muito longe de permitir o nivelamento das desigualdades sociais.


« A retenção não opera, contudo, de forma isolada. Ela é apenas a expressão mais evidente e precoce de um conjunto de práticas pedagógicas, disciplinares, modelos de avaliação e organização escolar [...] que contribuem para a reprodução de hierarquias sociais e culturais. »

Não se trata, evidentemente, de um fenómeno exclusivamente nacional. Há mais de cinquenta anos que a sociologia da educação, inspirada nos trabalhos pioneiros de Pierre Bourdieu e Basil Bernstein, tem vindo a dar conta, nos mais diversos contextos, com uma sólida base teórica e ancorada num repositório sistemático de pesquisas empíricas, dos diferentes processos, mecanismos, práticas e conceitos a partir dos quais a escola funciona como uma instituição de reprodução das desigualdades. No entanto, aquilo que parece ser particular ao caso português é justamente, e em primeiro lugar, o facto de, pelo menos até 2015, se encontrar em contraciclo com o observado noutros países europeus. Os chumbos vinham em crescendo num momento em que noutros países com essa tradição se procurava reverter a prática. Em segundo lugar, o que é mais notável, essa tendência resulta estruturalmente de escolhas efectuadas por docentes e direcções de escolas mais do que de directivas ministeriais. Da lei de bases da educação, aos estudos do ministério, passando pelas declarações de sucessivos ministros ao longo das últimas duas décadas (com a excepção do titular do cargo entre 2011 e 2015) muito tem concorrido para a redução da retenção e do abandono escolar. Não obstante a melhoria dos resultados ao longo da última legislatura, subsiste a incapacidade de muitos dos actores centrais do sistema de ensino em reconhecerem o papel das dinâmicas e processos internos ao sistema educativo na produção e na reprodução dessas desigualdades – evidentes, por exemplo, na persistência da retenção em ciclos precoces do percurso escolar mas, sobretudo, nas críticas de muitos docentes à burocracia necessária para chumbar os estudantes e nos sucessivos obstáculos colocados pelo ministério. De modo mais claro, parece, por conseguinte, predominar também entre muitos dos actores do ensino público uma concepção de escola enquanto instrumento de selecção e disciplina social em detrimento da ideia de educação como um direito social. Uma ideia mais próxima dos discursos conservadores do que dos ideais progressistas de cidadania.



III


O reverso das leituras optimistas e gradualistas sobre a persistência do insucesso escolar – aquelas que celebram mecanicamente as conquistas da democracia, que entendem qualquer crítica como um ataque à escola pública e que recusam um debate aberto sobre as suas lacunas e os seus bloqueios, pressupondo que o tempo e o crescimento económico solucionarão o problema – encontra-se num discurso conservador e elitista, quando não abertamente reacionário, que atravessa os debates sobre a transformação da estrutura de qualificações da população residente em Portugal. Mais do que procurar aprofundar a democratização dos sistemas de ensino, ou mitigar as desigualdades no seu interior, os que integram este campo – entre os quais se encontram muitos dos actores do ensino público que reproduzem uma concepção de escola enquanto instrumento de selecção e disciplina social em detrimento da ideia de educação como um direito social – tendem a olhar para a universalização do ensino no quadro mental de uma crítica genérica da cultura de massas. À semelhança do que sucedeu com cada vaga de “massificação” de práticas e consumos sociais – pense-se, por exemplo, nos pânicos morais gerados por certas fracções das elites culturais com a massificação da leitura, com o desenvolvimento de diferentes meios de comunicação social, da rádio às redes sociais passando pela televisão, ou mesmo com a universalização do direito de voto – também a massificação do ensino é entendida simultaneamente como um sintoma e uma causa da sua degradação e decadência. No essencial, lamenta-se, no quadro de uma visão elitista e nostálgica da educação (antigamente é que era bom) a perda de qualidade dos professores e dos estudantes, censura-se a ausência de rigor e disciplina (o facilitismo) reclama-se pela desvalorização da cultura erudita e clássica, substituídas por formas culturais consideradas menores. Trata-se, se quisermos regressar a Hirschman, do argumento dos efeitos perversos: a democratização do ensino que deveria elevar o nível cultural das populações, sedimentado numa cultura partilhada, em particular a erudita, desembocou numa deterioração da qualidade da educação. A solução para elevar o nível passaria obviamente, para os nostálgicos desse passado mítico, pontuado por linhas de caminho de ferro e rios coloniais, pelo investimento num ensino transmissivo e reprodutivo, pelo retorno aos clássicos, por uma selecção mais rigorosa dos professores e, sobretudo pela implementação de exames, em ciclos cada vez mais precoces enquanto instrumentos universais de avaliação.


«Mais do que procurar aprofundar a democratização dos sistemas de ensino, ou mitigar as desigualdades no seu interior, os que integram este campo [...] tendem a olhar para a universalização do ensino no quadro mental de uma crítica genérica da cultura de massas. »

Ainda dentro do campo conservador, uma abordagem de pendor mais economicista, sublinha, sobretudo, a futilidade em escolarizar a população de um país sem uma economia capaz de absorver a mão de obra qualificada que sai das universidades. Deste ponto de vista, Portugal desperdiça recursos ao formar contingentes cada vez maiores de licenciados (o país não precisa de mais doutores e engenheiros) em áreas nas quais não apresenta capacidade de absorção de mão-de-obra especializada e que terão necessariamente de encontrar colocação profissional noutros países. A solução para a crise da educação estaria, para este sector, em tornar as escolas portuguesas mais aptas a responder às exigências do mercado. Isto significaria, de modo mais concreto, alterar a relação entre o ensino humanístico e científico geral, que deveria ser limitado a uma elite com funções dirigentes, selecionada desde cedo, e o ensino técnico-profissional – com períodos de formação mais curtos, definidos por necessidades empresariais imediatas – para onde devem ser encaminhados a maior parte dos estudantes. Significa ainda, no campo da investigação científica, subordinar a autonomia dos processos da pesquisa e produção de conhecimento à sua utilidade de curto prazo para diferentes sectores produtivos. Ao argumento da futilidade acrescenta-se, muitas vezes, o risco de o acesso a níveis mais elevados de qualificação poder gerar um conjunto de expectativas às quais as estruturas produtivas e políticas do país não têm capacidade de corresponder. Seguindo uma das lições da sociologia clássica, reconhecem facilmente, e não sem razão, que o desfasamento entre ambições socialmente sancionadas e meios disponíveis para as satisfazer tem muitas vezes como resultado a erosão da autoridade e o incremento da rebeldia.


O fio que une este conjunto de discursos conservadores é justamente o da sua insensibilidade tanto em relação ao problema das desigualdades sociais, que tomam como naturais e, porventura até inevitáveis, como em relação ao papel fundamental que a educação desempenha na construção de uma cidadania democrática. Segundo estes pontos de vista, os sistemas educativos devem ser concebidos e construídos com base em critérios de natureza essencialmente económica, para uns, e de reprodução das hierarquias culturais, e portanto políticas, para outros. Ainda que o equilíbrio entre o ensino teórico e o ensino prático deva, necessariamente, merecer uma reflexão séria por parte de quem integra as comunidades educativas, tal como deve suceder com o debate sobre os programas, currículos e a definição daquilo que são consideradas as aprendizagens fundamentais, retirar do debate o problema da cidadania tem consequências políticas profundas.


«O fio que une este conjunto de discursos conservadores é justamente o da sua insensibilidade tanto em relação ao problema das desigualdades sociais, que tomam como naturais e, porventura até inevitáveis, como em relação ao papel fundamental que a educação desempenha na construção de uma cidadania democrática. »

As desigualdades produzidas no interior do sistema de ensino, para além de bloquearem trajectórias de mobilidade social ascendente, são também determinantes nos termos e condições mais gerais de acesso a outras esferas de produção de conhecimento e de usufruto das chamadas actividades culturais. Como sintetizou uma notícia do jornal Público sobre um inquérito recente às práticas culturais dos portugueses: “Acesso à cultura ainda é privilégio dos mais ricos, mais novos e mais instruídos”. As implicações políticas destas desigualdades não podem ser ignoradas. A restrição da escolarização, como um conjunto específico de recursos cognitivos e informativos, tem funcionado em Portugal, ao longo dos últimos dois séculos como um dos principais factores de controlo social, de regulação do acesso ao poder político e de fechamento das elites, de bloqueio do dissenso e do pluralismo ideológico e, de um modo geral, como um instrumento de produção de apatia política nas classes populares (Villaverde Cabral, 2006). Em suma, os vínculos entre educação e desigualdades sociais não se limitam a uma diferença estatística entre as probabilidades de sucesso entre os membros de diferentes categorias, ainda que essas diferenças sejam evidentes. Mesmo que se rejeite a ideia de uma relação automática entre escolaridade e práticas políticas esclarecidas, os efeitos do acesso à educação e aos diplomas escolares estendem-se, obviamente, ao exercício das liberdades civis e dos direitos políticos.

Em Outubro de 1973, Maria Velho da Costa, definiu a escola portuguesa da seguinte forma: “onde pela primeira vez soube que o que se diz e sente não se escreve, essa primeira lição do escândalo a consentir: o que se quer dizer e escrever e o que é aprovado se dito e escrito são coisas diferentes”. Talvez possamos então perguntar se a escola já consente que se escreva o que se diz e se sente. E a quem?





Referências bibliográficas:


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Sobre o autor:

Fonte: uc.pt

Rahul Kumar é professor auxiliar convidado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutorado em Sociologia pela Universidade de Lisboa, exerceu funções como docente na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, participando em diversos projetos de investigação relacionados com a história do desporto, da imprensa e da leitura, a sociologia das migrações, trabalho e precariedade.

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