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Como se reposiciona a direita em Portugal e na Europa? Uma entrevista com Riccardo Marchi

04 de Julho de 2024

Escolhemos publicar esta entrevista hoje, um ano depois, pela sua relevância na captura de uma fotografia possível da Direita em meados do ano de 2024. Volvidas as eleições legislativas de maio de 2025, urge recuar e compreender como se tem dado a imposição de "novas" forças políticas no espaço político e mediático português.



Antes de começar, gostaríamos que falasse um pouco sobre o seu percurso académico, principalmente, e sobre as áreas com que trabalha. 


Então, o meu percurso académico começa em 2005, aqui em Lisboa, com o Doutoramento em História Moderna e Contemporânea no ISCTE, sobre o tema das correntes de direita radical internas ao Estado Novo na segunda metade do século XX, ou seja, a partir de 1945. De onde é que vem este interesse em radicalismo de direita? Bom, nos anos 90, no fim da minha escola secundária e na universidade, comecei a ler muita literatura sobre o radicalismo político na Itália - radicalismo de direita e radicalismo de esquerda. Porquê? Porque no princípio dos anos 90, os militantes da esquerda radical e da direita radical que tinham protagonizado os chamados “Anos de Chumbo” (os anos 70) - de terrorismo e de violência política -, ou saíram da cadeia ou, aqueles que não estavam na cadeia, começaram a escrever memórias daquilo que tinha sido a militância juvenil. Começaram também a ser produzidos nas televisões italianas muitos programas jornalísticos, reportagens ou entrevistas a estes militantes políticos.

Então depois eu vim para outras regiões - por exemplo, fiz Erasmus+  em Lisboa, em 98-99, e aprendi português. Quando acabei a universidade, procurei trabalho e, como era licenciado em Ciência Política, eu era um em um milhão e ainda por cima sabia falar português, era mais competitivo; éramos muito menos [risos]. Então, o trabalho que arranjei aqui em Portugal era numa organização e estava nas áreas comerciais. Naquela fase, entre 2000-2005, comecei a procurar literaturas sobre o radicalismo português, ou seja, a mesma relação dos anos 70 em Portugal. Era um tema que eu conhecia até em França e Espanha, mas como estava em Portugal pensei em informar-me sobre a História portuguesa. Foi engraçado porque não encontrei nada. Havia alguns livros, poucos, sobre o radicalismo de esquerda, sobre gente que tinha participado em grupos de extrema-esquerda nos anos 70 e no período de transição, mas sobre a direita não havia nada. Achei muito estranho. Pensei “Como assim? Viveram 40 anos num regime autoritário de direita, como é que não há tipos de direita radical que contam o que fizeram?”, como aconteceu em Itália, Espanha e França, etc.

Entrei então em contacto com o professor António Costa Pinto, que na altura era um dos poucos que conhecia no sentido de ter visto nas livrarias os seus livros sobre os camisas azuis, por exemplo, um movimento português fascista dos anos 30. Contactei-o para perguntar se podia sugerir alguma literatura sobre esse tema que me interessava. Ele confirmou-me que não havia ainda estudos sobre a direita radical nos anos 60-70 e perguntou-me se eu estava interessado no tema para desenvolver um projeto de Doutoramento. A mim interessava-me. Ganhei uma bolsa e aí começou a razão do meu Doutoramento nesse tema. Quando acabei o Doutoramento em 2008 correu bastante bem, gostaram da minha tese, propuseram-me continuar a carreira de investigação, com bolsas de pós-doutoramento, e a partir daí desenvolveu-se toda a minha carreira académica até agora.



Como explica o surgimento do Chega no contexto político português?


Na Ciência Política portuguesa, pelo menos na última década, já havia estudos que tinham detetado um certo nível de demanda política de populismo de protesto em Portugal. Ou seja, havia muitos eleitores portugueses que estavam insatisfeitos com o funcionamento da democracia portuguesa. Não eram eleitores anti-democráticos, apenas estavam insatisfeitos com a forma como a democracia portuguesa estava a funcionar: as instituições e os partidos em particular. Esta insatisfação tinha levado, por exemplo, ao aumento constante do abstencionismo. A abstenção em Portugal era crescente até números preocupantes. Os inquéritos da Ciência Política já tinham feito chegar à conclusão de que havia uma grande insatisfação em relação à política.

Aquilo que não havia, ou pelo menos não havia na direita do espectro político, era um ator político que quisesse levantar esta bandeira do populismo de protesto de direita. Nós na esquerda já tínhamos, desde o início do século XXI, alguns partidos com características populistas, ou que pelo menos tinham tentado uma via populista. É o caso do Bloco de Esquerda, que teve um grande sucesso no início do século XXI precisamente porque era um ator disruptivo, novo, com uma nova forma de comunicação, que levantava muito esta bandeira da insatisfação com o sistema bipartidário que, desde o 25 de Abril de 1974, nunca mais tinha mudado.

E André Ventura percebeu esta janela de oportunidade na direita e testou-a em 2017, quando ainda era candidato a cabeça de lista nas eleições autárquicas em Loures pelo centro-direita (pelo PSD em coligação com o CDS e com o Partido Popular Monárquico). Ele experimentou esta fórmula com… não sei se se lembram da famosa polémica dos ciganos nas Autárquicas de Loures, onde ele manda o tema da “subsídio-dependência” dos ciganos para ver, também, como é que o eleitorado responde. Sabia que em Loures existia este tema da comunidade cigana, que é uma comunidade bastante importante na autarquia, mas que era um tema que nunca era utilizado pelos atores mainstream de centro-direita nas campanhas eleitorais, porque é um tema melindroso. É um tema que pode “queimar” um político, que pode ser imediatamente massacrado pelos media e pelos opositores políticos, ao ser chamado de racista, preconceituoso, etc. Então ninguém utilizava este tema.

O Paulo Portas, na altura pseudo-populista (quando era chamado de “Paulinho das Feiras”, onde ele fazia esta política de aproximação ao povo), utilizava o tema da subsídio-dependência, mas nunca o ligava a uma questão étnica. Nunca identificava o grupo étnico: os ciganos, os afro-descendentes, nada. Todos sabiam do que ele estava a falar, mas ele nunca abria o jogo. André Ventura fez precisamente o contrário: ele pensou “bem, vou experimentar como funciona”, e teve o êxito de que estava à espera. Passou de uma figura de um candidato autárquico periférico para uma figura política nacional, graças à reação dos media, que lhe deram atenção. Os opositores políticos também tornaram o André Ventura no centro das polémicas, tanto a nível local como a nível nacional - o próprio António Costa falou no caso de André Ventura, quando era primeiro-ministro -, e os próprios aliados do centro-direita entraram em polémicas. Como resultado final, ele perde as eleições de Loures, mas com um resultado eleitoral que o PSD nunca tinha alcançado naquela região.


Portanto, André Ventura dá-se conta de que esta oferta política e este estilo de discurso político tinha um custo: a polémica muito alta; mas, se houver disponibilidade para aguentar a pressão, consegue-se um retorno eleitoral. Fundamentalmente, ele apostou a sua carreira em tornar-se o porta-bandeira deste populismo de protesto de direita. Porque é que eu digo populismo de protesto? Porque nós não podemos pensar que toda aquela massa de eleitores que votou no André Ventura em 2017 o fez porque estava chateada com os ciganos. Há uma parte dos eleitores que sim, que se mobilizaram pela questão étnica, mas uma parte considerável dos eleitores mobilizou-se porque pensaram “há aqui um ator político que tem coragem de dizer coisas que ninguém tem coragem de dizer, e que é atacado pelos atores clássicos do sistema”. Portanto, ele é visto como uma pessoa que tem coragem de ir contra o sistema e de não pedir desculpa. É um eleitorado muito mais plural, não é só um eleitorado anti-cigano. Não é a questão cigana que mobiliza milhares de eleitores, é mais complexo do que isso. Portanto ele fez isso e, depois, multiplicou-se imenso quando ele é eleito para o Parlamento português em 2019.


nós não podemos pensar que toda aquela massa de eleitores que votou no André Ventura em 2017 o fez porque estava chateada com os ciganos. [...] É um eleitorado muito mais plural, não é só um eleitorado anti-cigano. Não é a questão cigana que mobiliza milhares de eleitores, é mais complexo do que isso.

Atenção, esta questão de 2017 não torna automático o sucesso de André Ventura. Se ele tivesse ficado fora do Parlamento, possivelmente a atenção mediática teria esmorecido depois. Acontece em 2019 que, com o número mínimo de votos, André Ventura entra como um deputado único e é aí que se replica duplicado o efeito que tinha tido em Loures: todos os meios de comunicação começaram a falar só dele, todas as oposições, mesmo o centro-direita começou a dividir-se e a falar dele (bem ou mal). Portanto, há uma multiplicação do fenómeno André Ventura graças a estas reações à sua volta. E, a partir de 2019, foi um crescimento. Ele consegue capitalizar uma parte consistente deste descontentamento com o sistema que nós já tínhamos registado na Ciência Política até este pico impressionante de 2024, com 1,3 milhões de votos nas legislativas. É um nível eleitoral que nenhum partido de direita (excluíndo o PSD) tinha alguma vez alcançado. É um feito histórico.


[...] todos os meios de comunicação começaram a falar só dele, todas as oposições, mesmo o centro-direita começou a dividir-se e a falar dele (bem ou mal).

E é importante aqui ver a capacidade de André Ventura de interpretar que tipo de populismo de protesto este eleitorado quer, e moldar o seu discurso com base nisso. Porque não é a primeira vez que existe um líder de direita radical em Portugal: nós temos o exemplo do Ergue-te, que quis representar a direita radical anti-sistema em Portugal mas que desde 2000 nunca ultrapassou o 0,5%, porque foi incapaz de interpretar a fórmula da demanda do populismo de protesto. Não tiveram essa capacidade e permaneceram muito ligados ao que na Ciência Política se chama a velha direita radical, ou seja, aquele nacionalismo inspirado no autoritarismo da primeira metade do século XX, como o salazarismo. Não sei se viram o debate dos partidos sem assento parlamentar nas últimas legislativas. Aquele debate entre o José Pinto Coelho e o entrevistador, onde diziam “É a Ponte Salazar”, “Não, é a Ponte 25 de Abril”, “Não, é a Ponte Salazar”... Ao eleitorado de protesto em Portugal, o eleitorado de direita, não lhe interessa nada essa reivindicação do legado do salazarismo. Portanto, o André Ventura teve também essa capacidade de perceber (também faz parte de uma outra geração) qual era a fórmula certa, e está sempre em modificação. Ele próprio molda constantemente esta fórmula para ir ao encontro das várias direitas.



Explorando um pouco mais esse tema, como define a ideologia e a estratégia política atual do Chega? O Chega representa realmente uma nova direita no espectro político português, ou reinterpreta o legado da direita radical dos anos 70 e do salazarismo para a atualidade nesse novo populismo de protesto que falou?


Não. Primeiro, o grande objetivo de André Ventura é tornar-se primeiro-ministro de Portugal. Para chegar lá, o objetivo intermédio, mas muito importante, é a construção da grande casa das direitas portuguesas e tornar o Chega num partido hegemónico até no centro-direita. Já conseguiu ser um partido incontornável no centro-direita para um governo de maioria absoluta parlamentar. Ou seja, hoje em dia, se um ator político quer liderar um governo de centro-direita com maioria absoluta parlamentar, não pode fazer as contas sem o Chega. Desde já é o resultado que alcançou. O André Ventura, para além disso, quer ser ele o partido hegemónico do centro-direita. Ele, para fazer isso, percebeu que em Portugal funciona a fórmula daqueles que na Europa são chamados os “partidos populistas da nova direita radical”. Nova direita, porque, na Ciência Política, é feita uma distinção entre a velha direita e a nova direita. A velha direita reconhece-se ainda num autoritarismo da primeira metade do século XX, como o salazarismo, o franquismo, etc.; e a nova direita engloba os partidos que não se reconhecem nesse passado autoritário, não estão minimamente interessados nesse passado autoritário.

Eu dou sempre o exemplo do Geert Wilders, na Holanda, que, mesmo quando surgiu enquanto partido de direita radical, sempre se definiu até como antifascista: “não somos fascistas, não nos interessa nada o autoritarismo da primeira metade do século XX e hoje em dia o perigo é islâmico”. O tema central do Geert Wilders é o islamismo e diz que quem tem funções autoritárias na Europa de hoje são as comunidades islâmicas. Por isso, “temos de nos proteger, temos de proteger a democracia destas posições autoritárias da religião islâmica”. São esse tipo de partidos que têm sucesso na Europa. Outro exemplo que dou frequentemente: os estudos da Ciência Política demonstram que nos últimos vinte anos a média de votos da direita radical a nível europeu triplicou. Hoje em dia são partidos que andam nos 15 a 30% dos votos. Mas esse triplicar da média dos votos é determinado por esses partidos da nova direita radical e não dos velhos partidos da direita radical que, pelo contrário, ficam marginais.

André Ventura percebeu isso e criou esta fórmula da nova direita radical. Agora, ele é um ator político num país do sul da Europa que teve historicamente um passado de autoritarismo de direita. Portanto ele sabe, como sabem também em Espanha, na Itália, na Grécia, que existe uma fatia pequena do eleitorado que é saudosista do passado. Daí o facto de não querer hostilizar nem sequer esta fatia do eleitorado, porque ele quer conquistar todos os eleitorados de direita, desde a pequena fatia do saudosista (que é bastante irrelevante) até aos democratas-cristãos, aos liberais, aos conservadores, aos laicos… quer apanhar tudo, e tenta agradar a todas estas direitas para congregá-las.

Portanto, não é uma modernização da direita tradicional dos anos 70 ou dos anos 60. É mesmo uma outra estratégia e uma outra cultura política até. Não nos podemos esquecer que ele faz parte de uma outra geração… ele nasceu em 1983 e não faz parte daquela geração do nacionalismo dos anos 60 que é, por exemplo, a geração de muitos ideólogos como o Diogo Pacheco de Amorim, uma figura importante do Chega. Ele [Ventura] cresceu nos anos 80/90 mas nunca passou pela extrema-direita portuguesa clássica. Nunca fez parte, por exemplo, do movimento skinhead, nem de longe, nunca participou nos bloqueios nacionalistas radicais que existiram nos anos 80/90, princípio de 2000, nunca fez parte do movimento identitário que começou no início do século XXI em Portugal também… Ele era um jovem do PSD, não tinha nada a ver com aquela cultura política.


ele quer conquistar todos os eleitorados de direita, desde a pequena fatia do saudosista (que é bastante irrelevante) até aos democratas-cristãos, aos liberais, aos conservadores, aos laicos… quer apanhar tudo, e tenta agradar a todas estas direitas para congregá-las.


O que é que separa a direita tradicional portuguesa, como por exemplo o caso do CDS, do Chega?


Aquilo que os separa é fundamentalmente a postura anti-sistema. O CDS e os outros partidos mainstream do sistema político português nunca quiseram desarticular o sistema partidário português, aceitaram como um dado adquirido que um dos pilares da democracia portuguesa são a rotatividade entre o Partido Socialista e o Partido Social-Democrata. Os outros atores que aparecem à direita ou à esquerda funcionam como um meio de suporte nesta alternância de poder entre os Socialistas e os Sociais-Democratas. E o CDS sempre quis fazer isso, sempre quis ser o parceiro confiável do centro-direita, até incrementando o seu nível eleitoral (é claro que não queria tornar-se um partido marginal), sendo uma peça deste bipartidarismo português.

O Chega não. Mostra-se como um ator insatisfeito com o sistema da Terceira República (ou seja, deste regime de 50 anos), deste bipartidarismo de 50 anos, desta hegemonia e rotação Socialistas/Sociais-Democratas, e quer desarticular totalmente este sistema partidário, tornando-se hegemónico. Ou, pelo menos (como conseguiram até agora), tornar o sistema num sistema tripolar por enquanto, com centro-esquerda, centro-direita e direita, influenciando a formação dos governos, as negociações de qualquer tipo de política pública… Desarticular completamente o sistema clássico como conhecemos. Esta é a grande diferença.


o CDS sempre quis [...] ser o parceiro confiável do centro-direita, [...], sendo uma peça deste bipartidarismo português. [...] O Chega não. [...] quer desarticular totalmente este sistema partidário, tornando-se hegemónico.


Depois, em termos de valores, na verdade são bastante parecidos. O Chega é bastante conservador, muito próximo não só de setores de direita do PSD, como também da cultura política do CDS. A diferença é o estilo. O estilo confrontacional, anti-elitista e de rutura do Chega não é o estilo do CDS. O CDS é muito mais institucional, no sentido de que não faz nenhum discurso anti-elitista, ou seja, não existe populismo dentro deste partido. O populismo, na definição da Ciência Política, é a visão dicotómica da realidade política e social, um antagonismo entre um povo homogéneo e uma elite corrupta. O CDS não tem este discurso. O CDS participa nas instituições e até participa nas elites. Não faz esta divisão. Pode criticar o Partido Socialista, mas o partido em si, e não uma elite que roubou a soberania popular, que estragou a democracia portuguesa… não faz este discurso.

O Chega faz. Quando André Ventura fala dos “portugueses de bem” cria esta imagem de um povo homogéneo (não interessa se é de direita ou de esquerda), mas um “português de bem” é aquele português que se levanta todas as manhãs, que vai trabalhar, que paga os seus impostos, que respeita a lei e a ordem, que respeita a polícia, que tem orgulho no seu país; independentemente da sua orientação política, existe uma elite corrupta que roubou a soberania popular e que deve ser varrida. Esta é a elite que, para dividir o povo, até utiliza minorias étnicas, culturais, sexuais ou religiosas com a subsídio-dependência. A subsídio-dependência é para o Chega uma forma de a elite capturar uma parte do povo e torná-la dependente deles, exatamente para romper alguma homogeneidade do povo. Então, o CDS não tem esta conversa política. Já o Chega tem. Portanto, a diferença é o populismo, a disrupção do bipartidarismo e a postura anti-sistema.



Pegando no aspeto parlamentar e nos resultados das eleições, como é que poderemos conciliar a polarização no Parlamento português tendo em conta a estratégia disruptiva do Chega?


Na verdade, a polarização não é tão grave como parece. Nós temos os dois partidos (PS e PSD) que, apesar de tudo, continuam em alta. São partidos que têm graves problemas devido ao facto de serem quem governa Portugal há 50 anos. Quem governa é sempre mais permeável ao desgaste e, na verdade, nós vemos que podem baixar a nível eleitoral mas permanecem os dois partidos predominantes na política portuguesa. Pelo contrário, a esquerda radical que podia ser antissistema e captar o descontentamento popular não está a conseguir fazê-lo. O PCP está em queda livre, tornando-se um partido com dificuldades em recuperar (tanto a nível local, como a nível nacional) a importância que tinha antigamente; o Bloco de Esquerda a mesma coisa, isto é, parou um bocado com a sua capacidade disruptiva do princípio do século; já para não falar do PAN e do Livre que, apesar de tudo, são partidos marginais e que não têm importância.


Quem governa é sempre mais permeável ao desgaste [...].

Na esquerda, nesta polarização da esquerda, não há uma grande onda de sucesso. À direita, sim. A direita conseguiu, através de André Ventura, esta polarização. Mas repito que está a ser menos disruptiva do que aquilo que podia ser, por enquanto. O PSD escolheu esta estratégia do governo minoritário. Ainda não sabemos qual vai ser o resultado se “com os radicais não se fala, nós não queremos uma polarização, mas sim uma convergência ao centro”; ainda não sabemos como esta fórmula irá resultar. Poderia correr mal, porque gerir governos minoritários é sempre complicado. Nos primeiros tempos da governação pareceu ter dificuldades, mas depois do período das [eleições] europeias conseguiu recuperar. Eu diria que temos uma polarização em Portugal devido ao aparecimento do Chega, mas o efeito prático desta polarização ainda não está a ser tão disruptivo no sistema de partidos como se poderia esperar.



Tendo em conta que referiu que o sistema partidário português é bastante resiliente em comparação com outros países europeus, como explica a não-implosão do sistema partidário português, em particular do PS e do PSD, depois de um escândalo de corrupção que foi muito mediatizado - com o ex-primeiro ministro José Sócrates - e crises económicas que foram bastante profundas, nomeadamente a crise de 2008? E, tendo em conta esta resiliência, é possível ver o projeto do Chega como viável a longo prazo?


Não é assim tão comum que os sistemas partidários impludam. Mesmo a nível europeu... Se vimos isso acontecer foi em Itália, na passagem da Primeira à Segunda República, porque houve uma ofensiva muito pesada do sistema judiciário contra a corrupção. Desarticulou mesmo os dois grandes partidos que eram a Democracia Cristã e o Partido Socialista. A operação anticorrupção foi tão profunda que os partidos não conseguiram resistir ao embate. Aconteceu na Grécia também, porque a crise económica foi tão profunda e tão grave que os partidos tradicionais que levaram a Grécia àquela situação económica não conseguiram resistir.

Mas nos outros países europeus, o sistema permaneceu mais ou menos, não ruiu. Podem ter existido modificações pesadas: caso francês, por exemplo, onde os socialistas eram um partido importante e quase desapareceram do mapa. Foram, porém, substituídos por forças moderadas do centro e centro-esquerda, ou seja, não houve um avanço (até às últimas eleições legislativas) dos radicais, tanto de esquerda como de direita. Outro exemplo, em Espanha: os socialistas e os populares permanecem os dois pilares do sistema. Na Inglaterra, os conservadores estão em queda neste momento, a favor dos laboristas; ou seja, a terceira força que está a surgir, o radicalismo de direita, não conseguiu ainda, apesar de tudo, desarticular o sistema partidário. Portanto, esta ideia segundo a qual estamos numa fase generalizada de desarticulação dos atores clássicos tem de ser lida com um bocado mais de moderação.


Eu creio que, em Portugal, as crises que nós vivemos não foram assim tão profundas ao ponto de causar o ruir dos partidos. Aí, a análise pode ser muito complicada porque, por exemplo, o caso de corrupção de José Sócrates seria o caso típico para fazer ruir um partido inteiro. Aqui há uma diferença. Na Itália, os casos de corrupção levaram a dezenas de condenações de políticos e, em Portugal, estamos há 10 anos com este caso, mas nem acabou a primeira fase do processo. Portanto, eu não sei dizer se o próprio sistema não está a ter capacidade de se autoproteger, abortando estes casos. Lembro-me de um outro caso que houve quando cheguei a Portugal e que foi muito grave: o caso da Casa Pia, que envolvia personalidades do PS ao mais alto nível. Este também não acabou em nada de substancial. Ou seja, são todas crises que não feriram de morte o sistema partidário. Agora, por qual razão? Não sei dizer. Não sei dizer se é o próprio sistema que consegue defender-se, ou se é por outras razões. Apesar de tudo, aquilo de que nós temos a certeza é: há uma degradação da imagem dos atores clássicos do sistema democrático português, o que abriu uma grande janela de oportunidades para atores como André Ventura. Possivelmente, um André Ventura nos anos 90 e princípio de 2000 não teria tido grande êxito.


há uma diferença. Na Itália, os casos de corrupção levaram a dezenas de condenações de políticos e, em Portugal, estamos há 10 anos com este caso, mas nem acabou a primeira fase do processo. Portanto, eu não sei dizer se o próprio sistema não está a ter capacidade de se autoproteger, abortando estes casos.

Pensando noutra coisa. No início de 2000, os portugueses estavam com um certo otimismo: entraram na União Europeia em 1996, houve um crescimento económico e até um crescimento de oportunidade para os portugueses, e a geração que começou a trabalhar no princípio de 2000 tinha esperanças no crescimento económico e no funcionamento do elevador social. Apesar de tudo, uma oferta de populismo de protesto, naquela altura, possivelmente teria tido pouca receção por parte do eleitorado. Nos 20 anos sucedidos de 2000 para 2024, a situação mudou radicalmente: a economia estagnou, as pessoas foram obrigadas a emigrar, veem que há uma grande dificuldade em melhorar os seus ordenados, que não há grandes possibilidades de crescimento económico, toda a gente que veio viver para a cidade encontra-se com grande dificuldade em viver lá devido ao aumento brutal do custo de vida. A vossa geração não é nada otimista e tem poucas oportunidades se não sair do país, e isto ajuda na criação de uma janela para gente zangada muito maior. Agora, que isto consiga desarticular o sistema dos partidos, ainda não conseguiu. E não é garantido que consiga fazê-lo.



Qual é a diferença entre o Chega e outros partidos da direita radical na Europa como, por exemplo, o Rassemblement National de Marine Le Pen ou o Vox em Espanha?


O André Ventura percebeu que a fórmula desses partidos populistas de direita radical funciona. Não digo que replicou aqueles modelos, mas o cardápio que aquele tipo de partidos utiliza, quer em termos de temas, quer em termos de estilo, o inspirou muito para o caso português. Passou a trazer ao contexto português o que mais mobiliza o seu eleitorado. Portanto, soube traduzir essa fórmula no contexto nacional. Isso não é uma novidade para André Ventura. Este, por volta de 2014-2016 (altura em que era militante do PSD), estava à procura de novas inspirações em termos políticos e não estava satisfeito com o estilo do partido onde militava.

E, por exemplo, na altura ele gostava muito de um estilo como o do Nicolas Sarkozy, o homem da direita clássica, francesa, mas com uma atitude muito mais confrontacional; do Sarkozy, que ,quando foi ministro do Interior, não teve medo de ir contra os homens das banlieues. Vocês não se lembram, eram demasiado novos, mas naquela altura houve muita violência por parte dos jovens das banlieues,devido à violência policial contra alguns destes jovens, houve protestos incendiários até, à clássica moda francesa. E o Nicolas Sarcozy era Ministro do Interior e chamou estes jovens de “escumalha”, disse “Nós não vamos tolerar esta escumalha e mandamos a polícia abater”. Ou seja, houve uma atitude “lei e ordem” muito forte que André Ventura apreciou. Porque isto faz parte da sua característica: André Ventura é principalmente o homem da direita law and order, que aprecia a polícia. Não é uma mentira nem uma máscara que ele construiu, porque ele sempre foi assim.


Um outro exemplo que o inspirava muito naquela altura era o Movimento 5 Stelle italiano, o clássico partido populista, que nem sequer era de direita mas que naquela altura tinha conseguido congregar todo o descontentamento italiano com discursos muito anti-sistema, com um estilo muito confrontacional, muito mal-educado. André Ventura estava interessado, já naqueles anos, nesse tipo de fórmula de direita mais dura e populista. Quando vê estes partidos - o Vox, o Rassemblement National (que já não é Frente Nacional, mas sim a mudança imposta por Marine Le Pen), quando vê o sucesso do Matteo Salvini, que apanha uma Liga já com dificuldade no princípio do século XX e consegue elevar o partido até 30% dos votos com uma visão muito securitária, anti-imigração, anti-esquerda - ele percebe que esta fórmula funciona. Então, utiliza os temas que sabe que vão funcionar aqui em Portugal, em particular a questão da corrupção. Os três temas principais são: o discurso anti-sistema e anti-partidos da “casta”, anti-subsídio-dependência (a ideia de que há gente que vive “à custa de quem trabalha”); anti-corrupção (ou seja, o sistema é corrupto), porque sabe que em Portugal há uma perceção transversal da corrupção muito alta; e a questão da imigração.


 André Ventura é principalmente o homem da direita law and order, que aprecia a polícia. Não é uma mentira nem uma máscara que ele construiu, porque ele sempre foi assim.

A questão da imigração funciona como? Muitas vezes, o André Ventura é criticado com “falas da imigração, mas em Portugal não há grandes níveis de imigração”. Essa é uma crítica errada, porque nós temos estudos que mostram como o discurso anti-imigração funciona muito em países onde não há imigração, exatamente porque o político faz o seguinte discurso: “olha como são os países com altos níveis de imigração, olha como é a França, olha como é a Inglaterra, olha como é a Holanda, a Bélgica. Nós não queremos reproduzir no nosso país aqueles problemas das sociedades multiculturais, com problemas com tensões religiosas ou tensões étnicas”. O discurso é este. É um discurso que, por exemplo, funcionou muito na Hungria: Orbán consegue tornar-se num porta-bandeira desta ideia para os húngaros. E André Ventura teve esta capacidade de ver que fórmula funciona, então decidiu e conseguiu traduzi-lo em termos portugueses.



Tendo em conta o caso italiano, como podemos entender a consolidação da extrema-direita no poder e a sua articulação internacional?


A Itália, muitas vezes, é apresentada como um caso de crescimento abrupto da direita radical, mas não é bem assim. Os três atores clássicos da direita italiana estão na cena a alto nível desde o princípio dos anos 90. O partido de Berlusconi, Forza Italia; a Lega Nord  de Matteo Salvini; e a direita radical Fratelli d’Italia  que, neste momento, é de Giorgia Meloni (e que está ligada por um fio histórico à Alleanza Nazionale), existem desde o princípio dos anos 90 e já fizeram parte de governos italianos em várias ocasiões.

Até Giorgia Meloni tem um passado histórico bastante forte: foi a mais nova ministra da Juventude no princípio do século XXI e foi a vice-presidente do Parlamento italiano, portanto é uma figura institucionalizada há muitos anos. Agora, Meloni tinha tido, em 2012, uma fusão entre a Alleanza Nazionale e o partido de Berlusconi, que correu mal. Nesse ano, ela decide voltar a fundar o partido Fratelli d’Italia que, inicialmente, teve alguma dificuldade em impor-se no ponto de vista eleitoral: ganha 1% dos votos, depois 3%, 4%, 6%. A capacidade dela foi a de, ao longo de 10 anos entre 2012 e 2022, permanecer sempre na oposição de todos os governos (de centro, de centro-esquerda, de centro-direita) que se alternaram naquela década. Foi uma década de forte insatisfação do eleitorado italiano, uma forte incapacidade por parte dos diferentes governos de resolver a situação italiana. Todos os atores políticos que se alternaram no governo pagaram por essa incapacidade de resolver a situação de instabilidade. Giorgia Meloni mantém-se sempre na oposição e, em 2022, capitaliza esta coerência na oposição, principalmente dentro do centro-direita. Ou seja, o sucesso de Meloni em chegar aos 26% é uma transferência de votos de eleitores de Forza Itália e da Liga para o Fratelli d’Italia -  transferência intrabloco.


Todos os atores políticos que se alternaram no governo pagaram por essa incapacidade de resolver a situação de instabilidade. Giorgia Meloni mantém-se sempre na oposição e, em 2022, capitaliza esta coerência na oposição.

Agora, aquilo que Giorgia Meloni está a demonstrar nestes dois anos de governo é uma forte capacidade de fidelizar este eleitorado. O estilo político de Meloni é muito diferente de Matteo Salvini, apesar de os dois serem considerados radicais de direita. Salvini tem um estilo muito confrontacional, muito disruptivo, e Meloni, pelo contrário, demonstrou ter um estilo mais institucional e pragmático, tanto a nível nacional, como a nível europeu. Aí está a grande diferença em relação ao que está a acontecer na direita radical europeia. Meloni, graças ao seu sucesso eleitoral e a esta imagem positiva que foi criada tanto a nível nacional como internacional - pois os media internacionais começaram a olhar positivamente para Giorgia Meloni -, com esse capital político que conseguiu construir tornou-se a líder de uma direita radical europeia que quer dialogar com o Partido Popular Europeu (EPP). Tem um projeto anti-sistema no sentido de desarticular a relação de forças clássica do parlamento europeu, que se baseia na aliança entre populares europeus, socialistas e liberais, e construir uma nova ordem entre populares europeus e o seu grupo de conservadores europeus (ECR) para incidir profundamente no rumo político na UE, principalmente em temas que lhe interessam: imigração, transição ecológica, a agenda pós-materialista, a agenda LGBT+, e todas estas questões das minorias étnicas, sexuais, etc. Portanto, Giorgia Meloni quer criar esta nova maioria de centro-direita para modificar substancialmente as políticas europeias e conseguiu obter alguns resultados. Por exemplo, nos últimos anos, a maneira como a UE aborda o tema da imigração mudou: já não se fala muito de redistribuição dos migrantes ilegais nos diferentes países-membro da UE, mas sim da necessidade de criar uma política comum de defesa das fronteiras externas da Europa. Esse é um dos objetivos que a Giorgia Meloni queria alcançar: a mudança de paradigma da do debate da imigração.


Pelo contrário, há outro género de forças de direita que, até agora, se tinham reunido no grupo Identidade e Democracia (ID), liderado por Matteo Salvini e Marine Le Penn e que há uns dias, como sabem, criaram um acordo com Orbán. Ou seja, Viktor Orbán propôs um novo grupo europeu de partidos soberanistas, promovido pelo seu partido Fidesz, o austríaco FPÖ e pelos checos do partido ANO. Este grupo tem uma postura muito mais crítica em relação ao Partido Popular Europeu (EPP), quer construir uma grande direita soberanista que critica abertamente toda a construção política de Bruxelas, e está a ter resultados importantes: o Chega já disse que está interessado neste grupo, a Liga de Matteo Salvini já disse que está interessada em aderir a este grupo… Os franceses do Rassemblement National ainda não disseram nada, mas possivelmente porque têm as eleições em curso; logo, expôr-se a nível europeu pode criar mais problemas do que ficar calados, mas é possível que depois das eleições francesas decidam aderir. Portanto, está a construir-se um grupo bastante forte de partidos soberanistas com uma atitude muito mais confrontacional em relação ao centro-direita que não a estratégia de Giorgia Meloni e do seu grupo dos Conservadores Europeus (ECR).


São duas linhas bastante diferentes. Não sei se irão convergir, vai ser muito complicado haver um grupo único de direita radical na Europa. Duvido que isso aconteça, pois há muitas tensões entre os partidos, mas isso não quer dizer que não convirja em política. Aliás, apesar de terem existido, até 2024, dois grupos, quando era para votar em temas como a imigração, o Green Deal, a agenda pós-materialista... votavam sempre da mesma forma. Temos de ver qual vai ser o nível de convergência destes dois grupos.




Sobre o autor:

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Riccardo Marchi é investigador na área do radicalismo de direita - o seu pensamento político, partidos e movimentos - sobre a qual tem publicado diversas obras. É investigador no ISCTE-IUL e professor na Universidade Lusófona.

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Revista A Salto, 2021

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