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Magda Molefas Gomes

Défice Democrático e Cidadania Europeia



A assinatura do Tratado de Maastricht, em 1992, foi um momento fulcral do longo processo de construção europeia, norteado pela determinação em afirmar a supremacia do sistema democrático através da cooperação entre Estados europeus no contexto de pós-Segunda Guerra Mundial. É neste tratado que se institui o conceito de “Cidadania Europeia”, um elemento estrutural no projeto democrático europeu.

Se a pertença da soberania ao conjunto dos cidadãos, a participação política dos mesmos e a existência de um Estado de Direito são princípios essenciais à definição de democracia, a fragilidade destes pilares pode representar uma crise no seio de um sistema democrático, ou mesmo uma quebra na legitimidade do mesmo. Na verdade, à União Europeia é frequentemente apontado um acentuado défice democrático no funcionamento das suas instituições. Com o objetivo de analisar o peso da questão da cidadania neste aparente défice democrático, é possível interrogar de que forma pode a crise da cidadania europeia pôr em perigo a legitimidade democrática e a estabilidade da União Europeia.

Assim, numa primeira parte, serão analisadas as diversas dimensões que apontam para uma crise da cidadania europeia e a sua relação com o referido défice democrático, que será inerente ao funcionamento das instituições da União Europeia. Numa segunda parte, serão analisados casos que procurarão demonstrar como esta crise da cidadania poderá constituir uma ameaça efetiva ao processo de construção europeia.



I – A Cidadania Europeia em crise

Na última década, a União Europeia tem atravessado crises sucessivas: da crise das dívidas soberanas à crise dos refugiados, ao Brexit ou à crise da Covid-19. Estas representam desafios existenciais à cooperação no seio da UE (Jongh & Theuns, 2017), mas são também reveladoras de um défice democrático intrínseco ao funcionamento desta organização supranacional, na medida em que põem em evidência o descontentamento dos cidadãos relativamente ao seu funcionamento. Diversas dimensões deste défice democrático revelam uma estreita ligação com o exercício da cidadania europeia.

Segundo Grimm (2014), citado por Habermas (2015), uma possível causa de tal défice democrático é o facto de as decisões políticas serem tomadas por instituições alheias ao processo democrático: instituições não eleitas, e que desta forma não sofrem qualquer pressão relativa à sua legitimidade política, têm funções centrais, como é o caso da Comissão Europeia. Para além disso, o poder delegado em instituições não diretamente eleitas pela totalidade dos cidadãos europeus, como o Conselho de Ministros, implica que representantes de uma nação possam tomar decisões relativas a outros Estados, que não os elegeram. Torna-se igualmente pertinente mencionar que a vontade dos cidadãos europeus parece nem sempre ser respeitada no processo de construção europeia. Um exemplo é a ratificação do Tratado de Lisboa pelos parlamentos nacionais em 2007, apesar de, em 2005, referendos em vários países membros da União Europeia (como, por exemplo, a França) terem recusado a ratificação do Tratado Constitucional, marcadamente semelhante.

O Parlamento Europeu é a única instituição europeia cujos membros são diretamente eleitos pelos cidadãos europeus. No entanto, os seus poderes não são equivalentes aos seus homólogos nacionais, sendo mesmo inferiores e insuficientes. De referir ainda que, por vezes, os Estados-membros delegam funções a instituições que não o Parlamento Europeu diretamente eleito, funções essas previamente exercidas pelos parlamentos nacionais, o que pode indicar uma perda de soberania por parte dos cidadãos. Grimm (2014) aponta igualmente para a distância entre o Parlamento Europeu e os cidadãos como um indicador desse défice democrático.

Segundo o Eurobarómetro da Comissão Europeia, na primavera de 2021, 49% dos europeus afirmavam confiar na União Europeia, o resultado mais alto registado desde 2008. Embora este número denote uma melhoria, confirma também o distanciamento existente entre as instituições europeias e os cidadãos europeus. Este afastamento acaba por conduzir a uma frágil participação política dos cidadãos, que se poderá traduzir na existência de uma crise da cidadania europeia. De facto, e ainda que a taxa de abstenção nas eleições europeias de 2019 (49.4%) seja a mais baixa dos últimos 20 anos, a mesma não deixa de manifestar uma carência de participação política por parte dos cidadãos europeus, constituindo uma ameaça à legitimidade democrática do Parlamento Europeu, bem como das restantes instituições europeias.

Na verdade, o fortalecimento de movimentos e partidos eurocéticos e nacionalistas de extrema direita nos diversos Estados europeus pode ser interpretado como revelador do acumular de dúvidas relativamente à legitimidade democrática do conjunto das instituições da União Europeia ou mesmo relativas ao projeto de integração europeia (Seubert, 2019).

"No entanto, o dilema relativo à cidadania europeia não reside apenas no seu exercício, mas também na sua extensão: esta é uma cidadania incompleta, o que decorrerá do facto de ser um objeto em (contínua) construção."

A frágil representatividade dos cidadãos nas instituições europeias e o baixo envolvimento político evidenciam, assim, uma cidadania em crise. No entanto, o dilema relativo à cidadania europeia não reside apenas no seu exercício, mas também na sua extensão: esta é uma cidadania incompleta, o que decorrerá do facto de ser um objeto em (contínua) construção. O Tratado de Lisboa afirma que a cidadania europeia “acresce à cidadania nacional e não a substitui”. Assim, os cidadãos europeus têm o direito de votar e ser eleitos nas eleições europeias e nas eleições municipais do Estado-membro de residência. Por outro lado, e apesar da associação do direito de circulação e permanência no território dos Estados-membros à cidadania europeia, o voto em eleições nacionais permanece vedado a cidadãos europeus em mobilidade, sendo acessível apenas aos cidadãos nacionais. Tal incompletude poderá ter como implicação um questionamento ou mesmo uma desestabilização dos fundamentos da União Europeia.



II – Brexit e autoritarismo, dois casos: uma origem comum?

No Reino Unido, a campanha favorável ao Brexit apoiou-se na resposta europeia à crise económica do início da década, mas também nas dificuldades da União Europeia em gerir a crise dos refugiados entre 2015 e 2016. Assim, e em certa medida, baseou-se em questões de delegação de competências na União Europeia e de défice democrático, culminando na decisão da saída do Reino Unido da União Europeia como resultado do referendo de 2016. É essencial destacar o impacto, talvez o mais marcante, de uma cidadania europeia incompleta neste resultado (Conant, 2021). Na verdade, os cidadãos de outros Estados-membros da União Europeia a viver no Reino Unido (tal como os cidadãos britânicos a viver noutros Estados há mais de 15 anos) foram excluídos da votação. Desta forma, alguns dos cidadãos europeus mais afetados pelo Brexit foram impedidos de votar, em parte, devido às lacunas da cidadania europeia. Segundo Conant (2021), é possível afirmar que, caso aquela englobasse direitos políticos completos nos Estados-membros, o voto dos cerca de 2.9 milhões de cidadãos europeus adultos residentes no Reino Unido teria impedido o Brexit (sendo que o resultado do referendo foi decidido por uma diferença de cerca de 1.3 milhões de votos). O Brexit é, assim, um exemplo de como o défice democrático e, em particular, as limitações da cidadania europeia têm a capacidade de conduzir a uma enorme fragilização e desestabilização da União Europeia.

Para além do acima exposto, se é possível concluir que os crescentes populismos e a chegada ao poder de regimes autoritários na Europa representam um agravamento do défice democrático, é igualmente legítimo interpretá-los como uma consequência do mesmo. Desta forma, os populismos podem ser analisados enquanto “sintoma” de uma insatisfação crescente relativamente à democracia (Berman, 2019). É relevante notar que o descontentamento político, o desconhecimento relativo ao funcionamento União Europeia e das suas instituições, bem como a perceção de que o voto não tem consequências estão entre as principais razões apontadas pelos eleitores para explicar a abstenção nas eleições europeias. É admissível concluir que uma cidadania europeia em crise também contribua para um crescente apoio aos partidos populistas.


"Desta forma, os populismos podem ser analisados enquanto "sintoma" de uma insatisfação crescente relativamente à democracia."

Na verdade, durante crises como, por exemplo, a dos refugiados ou das dívidas soberanas, instituições europeias caracterizáveis como tecnocráticas tomaram importantes decisões sem qualquer consulta democrática dos cidadãos (Berman, 2019). Partidos como o Fidesz, na Hungria, ou o PiS, na Polónia, beneficiaram com esta resposta europeia às crises ao apresentarem a União Europeia como uma ameaça à nação (Vachudova, 2019).

Assim, défice democrático e crise da cidadania europeia potenciam-se mutuamente, influenciando de forma assinável a chegada ao poder, em Estados-membros da União Europeia, de regimes autoritários que não respeitam o Estado de Direito. Estes regimes constituem claramente um questionamento da estabilidade e legitimidade democrática da União Europeia, que não apresenta uma resposta concreta a esta ameaça a um dos seus ideias.


A democracia figura no centro dos valores da União Europeia. No entanto, aquela encontra-se ameaçada a diversos níveis, tornando-se necessário reforçar a sua supremacia no espaço político supranacional central da União Europeia. É desta forma que, ao afirmar que a proteção da democracia no quadro da União Europeia é essencial à sua existência (Dupeyrix, 2014), que Habermas (2015) defende a necessidade de evolução do sistema político da União Europeia em direção a uma democracia transnacional, que se situe acima dos Estados e que se baseie no princípio da cidadania europeia. Conclui-se, assim, pelo imperativo de uma evolução do sistema político europeu, visando um reforço da cidadania e da participação democrática.

Na verdade, se o Tratado de Lisboa já previa um importante alargamento da capacidade de envolvimento dos cidadãos europeus no funcionamento da União Europeia através da Iniciativa de Cidadania Europeia ou através de um reforço dos poderes do Parlamento Europeu, uma nova expansão da capacidade de intervenção dos cidadãos parece ser atualmente necessária. Uma cidadania europeia mais alargada e uma maior proximidade entre as instituições europeias e os cidadãos parecem ser elementos fulcrais no processo de diminuição do défice democrático, mas também como garante da legitimidade democrática e da estabilidade política e social da União Europeia.



Referências Bibliográficas

Berman, S. (2019). Populism is a Symptom Rather than a Cause: Democratic Disconnect, the Decline of the Center-Left, and the Rise of Populism in Western Europe. Polity, 51(4), 654–667.

Conant, L. (2021). Failing backward? EU citizenship, the Court of Justice, and Brexit. Journal of European Public Policy, 28, 1592-1610.

Dupeyrix, A. (2014). Quelle finalité pour l’Union européenne ? Habermas et le concept de démocratie transnationale. Allemagne d'aujourd'hui, 1(207), 170-180.

Habermas, J. (2015). Democracy in Europe: Why the Development of the EU into a Transnational Democracy Is Necessary and How It Is Possible. European Law Journal, 21(4), 546–557.

Jensen, T. (2009). The democratic deficit of the European Union. Living Reviews in Democracy, 1, 1-8.

Jongh, M. d., & Theuns, T. (2017). Democratic Legitimacy, Desirability, and Deficit in EU Governance. Journal of Contemporary European Research 13(3), 1283-1300.

Seubert, S. (2019). Why the Crisis of European Citizenship is a Crisis of European Democracy. Em R. B. (ed.), Debating European Citizenship (pp. 287-291). IMISCOE Research Series, Springer, Cham.

Tratado de Lisboa. 17 de dezembro de 2007.

Vachudova, M. A. (2019). From Competition to Polarization in Central Europe: How Populists Change Party Systems and the European Union. Polity, 51(4), 689–706.

ZALC, J., BECUWE, N., BURUIAN, A., KANTAR. (Setembro de 2019). Eurobarometer Survey 91.5 of the European Parliament: The 2019 Post-Electoral Survey, Have European Elections Entered a New Dimension? Parlamento Europeu, Directorate-General for Communication, Public Opinion Monitoring Unit.



 

Sobre a autora:


Magda Molefas Gomes. Estudante do terceiro ano da Licenciatura em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, participante no programa integrado entre a Universidade de Coimbra e o Sciences Po Bordeaux. 20 anos.

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