Para compreender e perspetivar o estado da esquerda atual, entrevistámos o professor André Saramago. Antes de iniciar com as perguntas propriamente sobre o tema, pedimos que falasse um pouco sobre a sua trajetória profissional e sobre como se enquadra no campo da esquerda e das várias teorias das relações internacionais.
Muito obrigado pelo convite, antes de mais. Em termos da minha trajetória profissional, esta confunde-se um pouco com a minha trajetória pessoal que talvez seja, enfim, não necessariamente a mais prevalecente no ensino superior português. Eu venho de uma família em que ninguém tem o ensino secundário, básico até, e, portanto, ir para a universidade não era necessariamente algo que estivesse no radar. Foi algo que surgiu no contexto do secundário e muito por influência de uma professora de filosofia em particular. Apesar de estar no ramo de ciências, decidi estudar filosofia autonomamente, enquanto estudante externo, e foi nesse contexto que se desenvolveu a ideia de ir para o ensino superior, estudar relações internacionais. Esta decisão surgiu de, a dada altura, me ter apercebido que estava preocupado com questões de grande escala, relacionadas com a humanidade e com o futuro da humanidade, e para onde é que nós estávamos a ir todos coletivamente. E foi isso que me levou para relações internacionais. Efetivamente acho que fiz uma boa escolha na altura, que depois levou a fazer, enfim, o percurso académico com algum sucesso, ganhando algumas bolsas de mérito que me permitiram pagar as propinas e continuar a estudar. Posteriormente, tive sorte de ganhar uma bolsa de doutoramento da FCT, o que me permitiu estudar no Reino Unido, na Universidade de Aberystwyth.
Acho que foi durante a minha licenciatura no ISCSP [Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas da Universidade de Lisboa] que comecei a definir-me politicamente, mas num processo que de facto só se consolidou de forma mais clara durante o doutoramento.
Não venho de uma família minimamente politizada, as questões políticas não eram particularmente importantes na minha casa, mas durante o meu período no ISCSP comecei a perceber que o meu posicionamento natural, muito associado às minhas origens, não era necessariamente o posicionamento dominante na instituição, tradicionalmente mais à direita. E, portanto, essa identidade mais à esquerda, de certa forma, foi-se consolidando durante esse período, por via de contato com colegas e professores, embora mais como uma posição de contraste do que propriamente sustentada de forma coerente do ponto de vista teórico. Essa identidade depois consolidou-se de forma muito mais definitiva, e teoricamente sustentada, quando, depois do mestrado também no ISCSP, fui estudar, no âmbito do doutoramento, para o Departamento de Política Internacional da Universidade de Aberystwyth, que é um departamento tipicamente considerado mais à esquerda, muito associado às teorias críticas. E foi efetivamente aí que se consolidou e que ganhou algum suporte teórico uma posição política mais à esquerda, que, de certa forma, depois, se junta à posição teórica do ponto de vista profissional.
Durante o doutoramento, sob incentivo da minha co-orientadora, Kamila Stullerova, passei um verão inteiro a ler Marx, a ler o Capital, a ler o Grundrisse, e efetivamente as coisas ganharam, enfim, uma certa clareza. E desde então o meu trabalho profissional em teorias das relações internacionais tem tido sempre esse cunho crítico. Em grande medida comecei muito influenciado pela Escola de Frankfurt e pelo trabalho do Jürgen Habermas, muito influente também no trabalho do meu orientador, Andrew Linklater. Mas progressivamente, e isso reflete-se um bocadinho naquilo que eu tenho feito mais recentemente, nomeadamente num livro que acabei de escrever e que foi agora publicado, Grand Narratives in Critical International Theory, a influência do marxismo tem sido crescente. E, portanto, não tanto na linha da Escola de Frankfurt, mas efetivamente no marxismo mais clássico, tentando, contudo, mobilizar novas leituras desse marxismo, nomeadamente com um enfoque crescente nas questões ambientais e numa concepção materialista da relação entre humanos e natureza, que é, efetivamente, aquilo que eu quero desenvolver agora e, portanto, o meu próximo projeto será por aí.
Começando com perguntas mais de contexto nacional, de que maneira a esquerda se pode afirmar perante um Parlamento composto por 50 deputados do partido de extrema-direita e o Vice-Presidente da Assembleia da República do mesmo partido?
Pois, isso é uma boa pergunta, não é? Por acaso, há dias brincava com um amigo, que é bastante de direita até, e dizíamos que pelos 50 anos do 25 de abril temos 50 fachos no Parlamento, para celebrar. Mas é sintomático, não é? É sintomático de uma viragem à direita na sociedade portuguesa, que acho que precisa acima de tudo de uma leitura sociológica séria. Precisa de uma leitura que não entre numa espécie de pânico moral, em que, de repente, achamos que Portugal está cheio de fascistas que estavam no armário.
Lembra-me um bocadinho – peço desculpa por este desvio, mas só para contextualizar – lembra-me um bocadinho quando acabei o doutoramento e a cerimónia de final do doutoramento, por acaso, foi logo ali nos meses a seguir ao Brexit. E o ambiente que se vivia na universidade, pelo menos eu assim o senti, era um pouco elitista, era um bocadinho um ambiente de “ah, estes indivíduos de classe baixa e pouco educados foram todos votar no Brexit. Afinal, eram todos racistas”. Não havia necessariamente uma tentativa de perceber o porquê. Porque é que as pessoas podiam ser motivadas a aderir a certos projetos que, em última análise, até podem ser contrários aos seus interesses concretos. E, portanto, eu acho que uma tarefa importante da esquerda é fazer justamente isso, é perceber o porquê. É perceber o porquê de a mensagem do Chega! ser atrativa para uma determinada camada da população.
O Chega! é um projeto complexo. A meu ver, é um projeto de elite que tenta apelar às massas. Mas eu acho que a esquerda, acima de tudo, tem de perceber o porquê e tem de combater as causas desse porquê. Tem de readquirir o seu espaço junto das pessoas que se sentem sistematicamente excluídas da sociedade portuguesa. Hoje em dia, quando olhamos para a televisão, para a imprensa escrita e para o comentário, etc., dá a sensação de que há uma bolha de intelectuais e de pessoas com educação superior, que pertencem a uma classe média-alta, a falar umas com as outras. Vivem numa espécie de câmara de eco. E depois há uma parte muito substancial da população, aquela parte da população que demora duas horas para chegar de casa ao trabalho e vice-versa, e que quando chega à noite a casa não tem tempo para estar com os filhos, ou para ler jornais ou ver televisão, a não ser programas para se distraírem ao final do dia de trabalho. Essas pessoas não têm voz, nem estão a ser ouvidas. É com essas pessoas que a esquerda tem de falar.
« uma tarefa importante da esquerda é [...] perceber o porquê [...] de a mensagem do Chega! ser atrativa para uma determinada camada da população. »
A esquerda não pode ser levada por esta bolha mediática, que acho que é algo que tem vindo a acontecer nos últimos anos.
A esquerda, acima de tudo, tem de se reconectar com a classe trabalhadora e com os excluídos e desenvolver uma política verdadeiramente de massas, que é a única maneira de combater esta direita, enfim, dita populista, se esse termo é adequado. Acima de tudo, a esquerda precisa de se reconectar às suas raízes.
Tendo em consideração o que falou, os desafios da esquerda são muitos, mas como caracterizaria a estratégia dos partidos de esquerda nos últimos anos, nomeadamente com os acordos da Geringonça até agora? Como é que se pode caracterizar a estratégia que foi conduzida, nomeadamente pelo Bloco de Esquerda (BE) e pelo Partido Comunista Português (PCP), na sua relação com o PS? E como se podem estas forças políticas e os movimentos sociais articular-se para, de algum modo, avançar com certas pautas e, como disse, criar novos movimentos de massa suficientemente fortes para impactar as instituições?
Obrigado pela pergunta. No período da Geringonça - assim chamada de forma mais mediática – fui um apoiante dessa solução. Achei que essa solução era absolutamente essencial naquele momento para tentar introduzir uma quebra no ciclo marcado pela Troika e pelas tentativas de ir além da Troika e daquilo que, efetivamente, era um projeto de uma parte da elite portuguesa para reconfigurar Portugal de acordo com uma determinada interpretação do que é que deveria ser a sociedade portuguesa. E, portanto, eu acho que, nessa altura, os Verdes, o PCP e o Bloco fizeram uma boa opção, e foi uma opção interessante, a tentativa de apoiar o PS. Um dos problemas é que - enfim, eu digo isto às vezes em tom de brincadeira com amigos – o PS muitas vezes não é realmente de esquerda, pois não? E, portanto, estamos a falar de um PS muito dominado pela direita do PS, muito orientado para determinadas agendas europeias, também elas problemáticas do ponto de vista de um projeto nacional mais social.
E, portanto, é importante perceber que os partidos à esquerda deram o apoio necessário para tentar recuperar alguns direitos e algumas condições que tinham sido cortadas no período da Troika, mas talvez pudessem ter sido também um bocadinho mais assertivos durante esse período. E, acima de tudo, eu acho que o trabalho fora do Parlamento, que é o trabalho junto das pessoas, o trabalho junto dos locais de trabalho, junto da população em geral, é um trabalho que a esquerda tem de fazer. E tenta fazê-lo, efetivamente, não digo que não o tente fazer. Mas acho que precisa de o reforçar substancialmente.
« estamos a falar de um PS muito dominado pela direita do PS, muito orientado para determinadas agendas europeias, também elas problemáticas do ponto de vista de um projeto nacional mais social. »
Quanto à ideia de um movimento de massas, e como criar um movimento de massas, é particularmente difícil atualmente por várias razões. Por um lado, temos a questão, enfim, daquilo que muitas vezes é conhecido como as agendas mais identitárias, portanto, as causas mais identitárias. Efetivamente, a esquerda tem de as reconhecer e integrar. Mas acho que é muito problemático quando essas agendas se tornam o centro da ação política de uma forma que, pela sua própria natureza, se torna uma fonte de divisão. E, portanto, a ideia de que umas pessoas, porque não têm determinadas características, não se podem juntar a determinadas lutas, é profundamente problemática.
A esquerda tem de encontrar uma forma de integrar essas agendas, como é lógico, fazer parte delas, mas, ao mesmo tempo, encontrar elementos conectores entre as pessoas. Há uma parte da identidade das pessoas que são o público-alvo da esquerda, por assim dizer, que é verdadeiramente transversal e que é a identidade de classe, a qual, creio, tem sido frequentemente esquecida nas estratégias de alguma esquerda. Acho que a identidade de classe precisa de ser substancialmente reforçada na agenda da esquerda, porque é a identidade de classe que permite a tal transversalidade, que pode incluir as várias outras identidades também, e que permite um movimento de massas.
E aqui a agenda ambiental também poderá entrar. A esquerda precisa de desconstruir esta ideia de que existe uma oposição entre a melhoria das condições de vida das pessoas e o ambiente. Eu não creio que essa oposição seja necessariamente verdade. Essa oposição poderá existir sob o tipo de capitalismo que temos, mas acho que a esquerda pode e deve articular uma mensagem diferente, como forma, justamente, de unir as pessoas, diferentes agendas. É preciso perceber que, normalmente, as pessoas que vivem em piores condições ambientais, nomeadamente ao nível da pobreza energética, mas não só, são as classes baixas.
E, portanto, existe uma conexão entre a agenda ambiental e a agenda da luta de classes, que a esquerda tem falhado em fazer, de modo geral, e tem permitido que a agenda ambiental seja dominada por uma mensagem predominantemente liberal, predominantemente centrada no consumo individual, que aliena, em grande medida, a maior parte da classe trabalhadora. A maior parte da classe trabalhadora não tem os recursos financeiros nem o tempo para andar a fazer escolhas verdes no supermercado. E, portanto, a agenda ambiental tem que ser uma agenda de transformação no local de produção, e não necessariamente no momento do consumo. E eu acho, portanto, que as agendas ambiental e da luta de classes podem ser ligadas, e precisam de ser ligadas, algo que os partidos à esquerda não têm feito de forma eficiente, e que isso poderá ser parte do início desse movimento de massas que é necessário.
« existe uma conexão entre a agenda ambiental e a agenda da luta de classes, que a esquerda tem falhado em fazer, de modo geral, e tem permitido que a agenda ambiental seja dominada por uma mensagem predominantemente liberal, predominantemente centrada no consumo individual, que aliena, em grande medida, a maior parte da classe trabalhadora. »
Depois existe um segundo desafio que é a questão da comunicação. Porque, em grande medida, a comunicação social sofre de um certo enamoramento com a extrema-direita. Era extremamente comum, muito antes do Chega! ter a expressão parlamentar que tem neste momento, o Chega! aparecer muitas vezes no início das peças sobre as posições dos vários partidos acerca de determinado assunto. Isto resulta, por um lado, da ideia da comunicação social de que o Chega! é diferente e é atrativo e, como tal, dá audiência, e, por outro lado, creio que existe uma agenda intencional da parte da comunicação social privada em colocar o Chega! numa posição privilegiada, porque isso tem o efeito de tirar força à esquerda e, ao mesmo tempo, puxar o PSD para a direita.
E, portanto, existe essa questão, esse desafio da comunicação que depois se estende às redes sociais. Efetivamente, partidos como o Chega! ou a Iniciativa Liberal têm amplos recursos que lhes permitem mobilizar-se nas redes sociais de forma muito eficiente e são muito bons naquela mensagem curta e simples que capta a atenção. A esquerda tem de tentar perceber como contornar isto.
« existe uma agenda intencional da parte da comunicação social privada em colocar o Chega! numa posição privilegiada, porque isso tem o efeito de tirar força à esquerda e, ao mesmo tempo, puxar o PSD para a direita. »
Certos partidos, como o PCP por exemplo, têm os seus órgãos próprios, como o Avante! ou O Militante. Mas estes não são órgãos propriamente de leitura geral. E, como tal, às vezes estão só a falar para os convencidos. Além disso, há também um problema de comunicação, podemos falar sobre ele, relacionado com o PCP e a maneira como tem gerido algumas questões relacionadas com a Ucrânia, por exemplo. Mas creio que existe aqui uma questão de comunicação na qual a esquerda tem de tentar encontrar o caminho. Não sei exatamente qual é. Provavelmente poderá passar por refrescar alguma da sua imagem até e, a nível das redes sociais, saber comunicar mais efetivamente.
Acima de tudo, é preciso fazer uma luta em torno da história e em torno das conceções que se têm estado a tornar dominantes sobre o que é o socialismo e qual é a história do socialismo. E, portanto, tentar desmanchar leituras simplistas que se estejam a consolidar neste momento. E para isso é necessário, efetivamente, uma presença mais forte nas redes sociais, porque não são os canais de comunicação social que vão dar mais espaço à esquerda, nomeadamente para este tipo de luta, porque não o têm dado até agora. Portanto, vão continuar a não o fazer.
Uma pergunta que tem duas partes. Falando um pouco do que abordou sobre a estratégia da esquerda e sobre os seus limites e desafios, e retomando um pouco da velha questão de Rosa Luxemburgo, reforma ou revolução?, considera que a esquerda em geral, o Bloco de Esquerda e, em particular, o Partido Comunista Português, perderam qualquer horizonte revolucionário? Ou mesmo se esse horizonte revolucionário faria sentido, e uma opção reformista tem sentido? Considerando que a Geringonça, apesar de todas as conquistas que foram feitas, não foi um projeto suficientemente reformista, foi um processo de combater certos retrocessos. Então, qual destes caminhos é melhor? A reforma ou a revolução para superar as contradições do capitalismo?
E olhando para os desafios da esquerda, e como apontou em particular os problemas de comunicação, recuperando um bocado a proposta de Lenin, do poder dual. Há necessidade de criar aparelhos de poder dual que estão fora das instituições, fora do Estado, fora da democracia burguesa, das estruturas burguesas, para aumentar o potencial transformador da esquerda através da criação de instituições paralelas?
Bom, isso é a pergunta eterna com a esquerda, não é? A questão da reforma ou da revolução. Enfim, vou-vos dar uma resposta muito pessoal, ok? Que resulta de alguns anos de reflexão, às vezes angustiantes e de incerteza pessoal sobre o posicionamento mais adequado sobre determinados assuntos, e sobre o caminho e a história da própria esquerda. Mencionou tanto a Rosa Luxemburgo como o Lenin. Para mim, pelo menos, existem alguns autores e pensadores socialistas que considero particularmente importantes, ou que têm vindo a ser particularmente influentes para mim nos últimos anos, e que têm ajudado um bocadinho a definir a minha posição, que é uma posição que poderá ser descrita como de reformismo radical, se é que isso faz sentido.
Um desses pensadores é Domenico Losurdo, um historiador italiano, crítico de um certo marxismo ocidental e que procura, de certa forma, recuperar o valor que pode ser encontrado em experiências socialistas históricas, mantendo, contudo, um espírito crítico face a essas experiências. Outra figura particularmente influente para mim é o Nicolai Bukharin, que é um autor do qual falamos muito pouco. Bukharin foi durante algum tempo apoiante da experiência do comunismo de guerra na União Soviética, mas depois percebeu que aquilo não resultava, que não era o caminho, e levou a cabo uma viragem política e teórica no contexto da qual se tornou um apoiante da nova política económica iniciada pelo Lenine na União Soviética.
A ideia, inicialmente explorada por Lenine, mas depois defendida de forma mais aprofundada por Bukharin, era de que, num mundo em que o capitalismo se consolidava e a revolução mundial que retiraria a URSS do isolamento não parecia ir ocorrer em breve, a construção do socialismo tem que ser algo lento e envolve o uso de mecanismos de mercado, embora sobre a regulação do estado socialista, para incentivar o desenvolvimento das forças de produção numa direção socialista. É um processo lento e que envolve tanto desenvolvimento tecnológico como transformação cultural.
Contudo, como sabemos, o projeto de Bukharin não durou muito tempo. Inicialmente contou com o apoio de Estaline como forma de combater a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky. Mas depois, quando o Estaline faz a sua viragem para a industrialização e coletivização forçada, aproximando-se até da posição de alguns trotskistas, o Bukharin manteve a sua posição favorável à nova política económica e foi considerado um traidor por causa disso. Eventualmente foi assassinado pelo regime Estalinista. Mas a ideia do Bukharin é esta, de que a transformação em rumo ao socialismo é algo que nasce a partir do capitalismo. Que tem que nascer a partir do capitalismo porque só com tecnologia, com meios de produção, forças de produção realmente avançadas, é que se constitui a base para criar um socialismo de abundância. Porque o socialismo tem de ser um projeto de abundância, não pode ser um projeto de pobreza. Não pode ser um projeto de irmos viver todos com um bocadinho de menos. Bem pelo contrário, a ideia do socialismo promete muito mais abundância do que aquela que é possível no contexto do capitalismo.
E também tem que ser um projeto de transformação cultural. E nesse contexto, o Bukharin, de certa forma, aproxima-se das posições de outros autores, como o Alexander Bogdanov, que é alguém que também não é particularmente discutido, ou do António Gramsci. E a posição do Gramsci é muito interessante. O Domenico Losurdo tem um trabalho sobre o Gramsci muito bom, que mostra que o Gramsci, de facto, era alguém com um projeto de poder, e de conquista do poder, mas usando para isso tanto canais da democracia burguesa como formas de poder paralelo, nos quais essa transformação cultural poderia ser incentivada e construída, ainda dentro do quadro do capitalismo.
« o socialismo tem de ser um projeto de abundância, não pode ser um projeto de pobreza. Não pode ser um projeto de irmos viver todos com um bocadinho de menos. Bem pelo contrário, a ideia do socialismo promete muito mais abundância do que aquela que é possível no contexto do capitalismo. »
E, quando falamos de transformação cultural, falamos de um processo de desnaturalizar o capitalismo, e de desnaturalizar as relações sociais capitalistas, construindo um movimento cultural, político e ideológico, que vislumbre um mundo alternativo. E, em certa medida, o Partido Comunista Italiano, que foi o maior Partido Comunista na Europa Ocidental, tentava seguir essa fórmula Gramsciana, por via dos centros de trabalho e das escolas para trabalhadores, que muito influentes foram em mobilizar as classes trabalhadoras. É lógico que depois entram aqui complexidades, nomeadamente a influência que os Estados Unidos e a NATO tiveram em Itália, para impedir a ascensão ao poder do Partido Comunista em associação com outros partidos.
Mas eu diria que as lições de pensadores como o Gramsci ou o Bukharin se mantêm relevantes. Há aqui uma batalha cultural que tem de se travar, essa batalha não pode ser apenas nos canais oficiais, por assim dizer, e a esquerda tem que se reconectar com as classes trabalhadoras diretamente.
Mas ao mesmo tempo, as instituições da democracia burguesa não devem ser ignoradas. Eu acho que o Estado, e aqui sou muito próximo do Losurdo novamente, é um dos grandes problemas teóricos da esquerda. Historicamente, a esquerda marxista nunca pensou o estado de forma aprofundada. Tende a ver o Estado como um instrumento apenas de opressão por parte das classes burguesas, mas pouco elaborou acerca de como o Estado e os seus instrumentos podem promover uma transformação socialista da sociedade, a não ser por via dos seus instrumentos repressivos. A ideia dominante é que o objetivo do socialismo e da revolução socialista é destruir o Estado, pois inaugurará uma sociedade sem classes e, consequentemente, sem conflitos e necessidade de instrumentos repressivos. Creio que essa ideia, e os seus contornos claramente utópicos, tiveram efeitos históricos bastante negativos.
« Eu acho que o Estado [...] é um dos grandes problemas teóricos da esquerda. Historicamente, a esquerda marxista nunca pensou o estado de forma aprofundada. »
Nomeadamente, o que acontece logo após a Revolução Bolchevique. Esta ideia de que vamos fazer uma Revolução e depois destruir o Estado, que vai deixar de existir, e inaugurar uma sociedade sem classes ou conflitos. Só que o problema é que, ao destruir-se o Estado burguês e as suas instituições, também se corre o risco de destruir certas conquistas civilizacionais da burguesia, como a ideia de democracia parlamentar, ou a ideia de uma Constituição e de direitos constitucionais. Quando tal ocorre, e as instituições de regulação de conflitos do Estado burguês são destruídas, como é que se lida com oposições e diferendos dentro do próprio movimento socialista? A dada altura, tudo o que é oposição dentro de um movimento é visto como uma traição à revolução e uma possível restauração do capitalismo. E, portanto, rapidamente aquilo que podiam ser conflitos geridos de forma normativa, e dentro de um determinado quadro constitucional, passaram a ser conflitos sanguinários. Portanto, eu acho que é muito importante a esquerda não descurar o Estado nem certas conquistas burguesas, como a ideia de Constituição, de direitos fundamentais, de liberdade de expressão.
Para mim, socialismo não é anticapitalismo ou anti conquistas históricas das revoluções liberais. É pós-capitalismo e pós-sociedade burguesa. O socialismo é algo que não nega a herança histórica, cultural, civilizacional do período capitalista. É algo que, de facto, até pega nessa herança, eleva alguns dos seus princípios e valores à sua concretização, a qual não é possível obter no quadro do capitalismo. Valores como igualdade, liberdade, fraternidade, etc., não são possíveis concretizar em pleno no quadro de relações capitalistas. Portanto, o estado constitucional, a liberdade de expressão, direitos individuais, são conquistas sociais da burguesia, mesmo que enviesadas depois na sua prática, que não devem ser descuradas num quadro socialista.
« O socialismo não é anticapitalismo ou anti conquistas históricas das revoluções liberais. É pós-capitalismo e pós-sociedade burguesa. O socialismo é algo que não nega a herança histórica, cultural, civilizacional do período capitalista. É algo que, de facto, até pega nessa herança, eleva alguns dos seus princípios e valores à sua concretização, a qual não é possível obter no quadro do capitalismo. »
E, por isso mesmo, eu não vejo essas duas estratégias, reforma por via da democracia parlamentar ou criação de poder dual onde se cultiva transformação cultural para novas possibilidades de organização social, como diretamente opostas. Eu acho que ambas devem ser perseguidas de forma paralela e que se deve enfatizar uma ou outra, de acordo com as circunstâncias históricas específicas que se vivem.
Agora, concordo, em parte, com aquilo que vocês estavam a dizer, que no período da Geringonça, em grande medida, perdeu-se força, perdeu-se a conexão com a classe trabalhadora e a capacidade de dar voz a essa classe trabalhadora. Depois apareceu o Chega!, que finge que dá voz a essa classe. Portanto, é preciso recuperar essa ligação e é preciso, acima de tudo, saber articular essas vozes de maneira a que elas se sintam representadas, mas que, ao mesmo tempo, consiga canalizar a sua frustração para um projeto de construção social, em vez de simplesmente para um projeto destrutivo. Como fazer isso é o grande desafio para a Esquerda nos tempos que correm.
Tendo em conta o que foi dito, como podemos entender a regressão da Esquerda no plano internacional depois da queda da União Soviética?
Eu acho que em parte tem a ver com a própria herança da União Soviética e como interpretar essa herança. Ao longo da minha reflexão sobre este assunto tenho tido muitas vezes posições ambivalentes e tenho mudado de posição face a essa herança. Quem diz a União Soviética diz como lidamos ou interpretamos, atualmente, a China, por exemplo. A esquerda entrou um bocadinho em modo de autodefesa pela ideia de que a União Soviética, que se representava como um projeto socialista, falhou enquanto projeto. Mas não falhou só quando caiu, não é? Falhou, também, antes disso. Ou foi falhando em diferentes momentos, nomeadamente, na maneira como nunca foi capaz de lidar com a questão das nacionalidades, na maneira como estabeleceu regimes opressivos em muitos países na Europa de Leste. A Esquerda sempre teve dificuldade em perceber exatamente como ter aquilo que, no livro que publiquei recentemente, chamo de “solidariedade crítica”. Ou seja, como ser solidário com projetos socialistas, mas ao mesmo tempo ser crítico desses projetos. É sempre um balanço muito difícil, porque, muitas vezes, essa crítica abre a porta a ser instrumentalizada por movimentos anti-socialistas. Portanto é um balanço muito difícil.
Mas acho que é preciso tentar encontrar esse balanço. E, por isso mesmo, é que eu vos estava a mencionar que existe uma luta histórica para ser travada. Uma luta pela memória histórica. Na medida em que, no quadro português, por exemplo, está-se a tornar muito comum, em grande medida mobilizado pela Iniciativa Liberal, pelo Chega!, e pela presença que têm nas redes sociais, esta ideia de que o socialismo é inimigo da liberdade, é responsável por milhões de mortos, etc. E é importante não negar, efetivamente, os aspetos mais obscuros dessas experiências socialistas mas, ao mesmo tempo, resgatar os seus aspetos positivos e o horizonte de esperança de uma alternativa para a sociedade. E, acima de tudo, enfatizar que essa mesma história de violência, o capitalismo também a tem de forma muito significativa. Tem, e continua a ter neste preciso momento, todos os dias. E, portanto, acho que é preciso tornar isso muito claro e fazer essa luta pela memória histórica, não abandonando, contudo, um espírito crítico face às experiências socialistas que, efetivamente, têm sido desenvolvidas historicamente.
« A Esquerda sempre teve dificuldade em perceber exatamente como ter aquilo que [...] chamo de “solidariedade crítica”. Ou seja, como ser solidário com projetos socialistas, mas ao mesmo tempo ser crítico desses projetos. É sempre um balanço muito difícil [...] »
Portanto, a esquerda tem estado predominantemente à defesa. Eu acho que a Esquerda tem de deixar de estar tão à defesa e passar ao ataque, quer na crítica do capitalismo, quer na defesa do projeto socialista, reconhecendo, contudo, as suas dificuldades históricas e que se trata de um processo de aprendizagem de longo prazo, no qual se pode aprender com os erros do passado, em vez de se negar as experiências históricas no seu todo e não as discutir de forma aprofundada. Portanto, não retratando o socialismo como algo ideal e utópico, porque isso também não lhe ganha grande credibilidade, mas como um processo de construção histórica. Acho que é preciso fazer essa luta pela memória histórica. E, lá está, essa luta passa muito pela comunicação, e acho que é muito necessário que essa comunicação se foque nos problemas concretos do dia a dia, claro, mas que também tenha uma narrativa coerente, de qual é o caminho histórico da esquerda, e qual é o futuro histórico da esquerda.
Esta é a primeira parte da entrevista. Na segunda parte, interessar-nos-emos pelas incontornáveis questões da ecologia, do ensino e do papel que a esquerda tem a desempenhar junto das novas gerações.
Sobre o entrevistado:
André Saramago é Professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutorado em Política Internacional pela Universidade de Aberystwyth, é autor de Grand Narratives in Critical International Theory (Routledge, 2024), e co-editor de Non-Human Nature in World Politics: Theory and Practice (Springer, 2020). A sua investigação interessa-se pela intersecção entre a teoria internacional crítica, a sociologia histórica, estudos científicos e ambientais e estudos da Ásia Oriental.
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