Entrevistámos a investigadora Vera Ferreira sobre as perspetivas futuras da ação climática e energética em Portugal e na Europa, assim como o lugar da esquerda neste projeto.
Antes de iniciar propriamente com as perguntas temáticas, gostaríamos que se apresentasse e falasse um pouco da sua trajetória académica e das suas áreas de pesquisa.
Eu venho das Relações Internacionais - licenciatura e mestrado na FEUC [Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra]. Na altura especializei-me nos Estudos da Paz e da Segurança no mestrado, já com uma dissertação sobre Migrações Climáticas e Segurança Humana. Portanto, a minha trajetória de investigação em torno das alterações climáticas começou no Mestrado. Posteriormente ingressei no Doutoramento em Alterações Climáticas e Política de Desenvolvimento Sustentável, que estou agora a concluir, no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, e atualmente estudo sobre as transições energéticas justas, sobre a democracia energética e sobre a energia comunitária no contexto português. Portanto este é o meu projeto de investigação no contexto do meu projeto de tese.
Depois, obviamente, tenho outros interesses. Tenho militância, participação pública ativa no campo da esquerda, nas áreas da ecologia sobretudo, sou militante ecossocialista, tenho escrito sobre esta temática, e penso que, para já, será suficiente…
Começando com uma questão que é central para debater o clima e entender como a esquerda se relaciona com esta problemática: Quais são as origens e os impactos da crise climática em Portugal?
Essas são duas perguntas distintas e muito abrangentes. Eu vou tentar ser o mais sintética possível.
Em primeiro lugar: as origens daquilo que pode ser designado crise climática. Provavelmente já ouviram falar, esta expressão é muito popular, no Antropoceno - a era do Homem. E como nós estaríamos a viver uma nova época geológica em que o homem é a força motriz - uma força geológica por excelência que tem um impacto e uma marca indelével no sistema climático terrestre. E, portanto, nós tendemos a apresentar (e quando digo “nós” falo até do próprio sistema de ensino, os programas escolares…). Quando nós aprendemos a primeira vez sobre ambiente e alterações climáticas, existe muito esta correlação direta: a humanidade é responsável pelas alterações climáticas. Ora, é muito importante desconstruir esta narrativa e, de facto, tentar situar esta crise ecológica, em que as alterações climáticas são, na verdade, apenas uma das manifestações mais perniciosas, porque a crise ecológica é muito mais ampla. É importante situá-la [a crise ecológica] num determinado tempo histórico, num determinado tempo político, e num determinado modelo produtivo.
Portanto, é com a ascensão e com a consolidação do sistema económico capitalista que as alterações climáticas despoletam e é, sobretudo, a partir da 2ª Guerra Mundial, no período da chamada Grande Aceleração, que esta crise ecológica, com múltiplas declinações, se começa a intensificar. E existe efetivamente um modelo de produção, um sistema socioeconómico, onde as relações de produção estão organizadas para, de facto, explorarem seja combustíveis fósseis, minérios, água, ou outros recursos naturais, em prol de benefícios económicos - da acumulação de riqueza e da geração de lucro. E, portanto, é o sistema capitalista, e não a humanidade no seu todo, a espécie humana, que está na origem da crise climática. É importante desconstruir este mito, de que toda a espécie humana tem responsabilidades numa crise, quando na verdade, ela tem produtores, e existe uma elite poluidora, e essa sim deve ser desmascarada e combatida, no meu ponto de vista.
"É importante situá-la [a crise ecológica] num determinado tempo histórico, num determinado tempo político, e num determinado modelo produtivo."
E depois, a questão dos impactos. Ora, os impactos… Falou especificamente no contexto português, mas nós podemos já aqui traçar uma cisão muito clara entre o Norte e o Sul global, porque realmente as regiões, os Estados, as classes sociais que menos contribuíram para desencadear as alterações climáticas serão as mais penalizadas. Aliás, já vemos em todas as regiões do globo como fenómenos climáticos extremos, mas também outros fenómenos climáticos mais progressivos, afetam os modos de vida tradicionais, seja pela perda de colheitas, seja pela perda de infraestruturas, enfim. Existe aqui um efeito multiplicador das alterações climáticas que será tanto mais visível e tanto mais grave, quanto maiores forem as vulnerabilidades e as desigualdades pré-existentes. E, portanto, não por acaso, o Sul global e os grupos mais vulneráveis estão mais expostos aos efeitos das alterações climáticas.
Portugal insere-se aqui numa região que é considerada um hotspot pelo painel intergovernamental para as alterações climáticas - a região do Mediterrâneo. Portugal combina fatores de risco climáticos relacionados, como sabemos e temos vindo a assistir com cada vez maior frequência, com as ondas de calor, que por sua vez, conjugadas com menor precipitação e secas severas, tornam os incêndios florestais cada vez mais devastadores. Temos, também, problemas relacionados com o litoral, com a erosão costeira, com a subida do nível médio do mar. E tudo isto vai combinar-se com o perfil de especialização da nossa economia. Por exemplo, somos um país cada vez mais dependente do setor terciário, e em particular, do turismo, que é uma atividade particularmente vulnerável em relação às alterações climáticas.
"Existe aqui um efeito multiplicador das alterações climáticas que será tanto mais visível e tanto mais grave, quanto maiores forem as vulnerabilidades e as desigualdades pré-existentes."
Assim, se nós pensarmos em impactos de médio-longo prazo das alterações climáticas no território português, veremos como atividades como a agricultura, o turismo, a silvicultura, em suma, todo o setor agroflorestal, serão bastante afetadas. Claro que países com outros perfis de especialização, por exemplo, países mais industrializados com tecnologia de ponta, criam produtos com maior valor acrescentado e não estarão tão vulneráveis. Portugal, infelizmente, combina aqui riscos tanto socioeconómicos como climáticos.
Reconhecendo que há uma dimensão social e política na forma como se origina a crise climática, que tem origem num determinado modo de produção, e que há uma certa narrativa sobre como se origina essa crise climática - uma narrativa que deve ser disputada - , qual é o lugar da ecologia nessa disputa política para responsabilizar os verdadeiros culpados e dar luz à população sobre os verdadeiros problemas? Qual é o lugar da ecologia nesta disputa?
Eu respondia a essa pergunta através de uma citação muito célebre de um ambientalista/sindicalista brasileiro, Chico Mendes, que disse que “ecologia sem luta de classes é jardinagem”. E, portanto, é esse o papel da ecologia: politizar a crise climática e afastar-se de narrativas convencionais, que, muitas vezes, são veiculadas e reproduzidas pelo próprio movimento ambientalista mais mainstream. É importante fazer estas cisões e estas distinções claras de classe. Ou seja, é importante reconhecer que há um sistema económico que, neste momento, está a tentar reproduzir-se, maquilhando-se de verde (o chamado capitalismo verde), mas que assenta exatamente na mesma lógica extrativista, de acumulação, de exploração da natureza e dos trabalhadores. E é esse o papel da ecologia: é visibilizar as relações assimétricas de poder que são perpetuadas por este sistema económico, contestar essas relações de poder e de propriedade e, sobretudo, num quadro político que se situa naturalmente à esquerda, oferecer projetos políticos de futuro alternativos. Portanto, alternativas radicais, ou seja, ecológicas, terão de ser necessariamente anticapitalistas. Eu não consigo conceber uma revolução ecológica que não seja socialista também. Daí esta síntese que nos é proporcionada pelo ecossocialismo. Eu diria que é provavelmente a corrente de pensamento, o movimento sociopolítico, que está, neste momento, mais bem preparado, que está munido das ferramentas teóricas, analíticas e, também, da força popular necessárias para construir este projeto radical.
"alternativas radicais, ou seja, ecológicas, terão de ser necessariamente anticapitalistas."
Claro que há dificuldades. Imagino que me vão perguntar sobre as dificuldades. Mas quando me perguntam sobre o papel da ecologia, é este: repolitizar a crise ecológica e, de facto, tentar desocultar todas estas relações de poder que existem e que continuarão a existir caso o capitalismo verde singre.
Falou um pouco sobre o papel da esquerda e a estratégia que deve ter para enfrentar esta crise. No ecossocialismo, por vezes, há uma certa ambiguidade na forma como essa proposta se materializa em termos de estratégia, entre a reforma ou revolução, dependendo dos ecossocialistas que estamos a falar - obviamente que há mais ecossocialistas que tendem para uma proposta de carácter radicalmente anticapitalista no sentido revolucionário.
Retomando a velha questão de Rosa Luxemburgo, reforma ou revolução, tendo como ponto principal o clima e a crise climática, como olha para estas estratégias da esquerda sendo que muitas delas, nomeadamente nos atuais partidos à esquerda, são propostas que se apresentam na sua maioria reformistas e não radicalmente revolucionárias? É possível, a longo prazo, revolucionar o capitalismo, no sentido anticapitalista, sobrepondo a proteção ambiental e a segurança dos trabalhadores? Ou é a revolução a única opção correta para enfrentar o desafio climático e a devastação social que daí advém?
Essa pergunta é extremamente pertinente e difícil, e fez muito bem o diagnóstico, que eu partilho. Realmente existem posições razoavelmente divergentes no que toca aos meios para alcançar o que seria um projeto político ecossocialista. E eu diria que essas dúvidas, essa ambiguidade, residem num problema que o ecossocialismo ainda não conseguiu enfrentar, que é o das escalas - as escalas de atuação política. Terão lido, certamente, vários ecossocialistas que falam da necessidade de mudanças à escala global na medida em que a crise ecológica, nas suas múltiplas declinações, exige uma resposta global. É um fenómeno inevitavelmente global. E, portanto, há uma discrepância grande entre a magnitude do problema (a dimensão avassaladora da crise ecológica) e, muitas vezes, as respostas das soluções que nos são propostas. Ou existe um discurso profundamente infantilizador - o chamado “pensar global, agir local”, em que nos é vendida a ideia de que cada um de nós enquanto cidadão tem responsabilidade na mitigação das alterações climáticas e, portanto, esta responsabilidade é delegada para o cidadão enquanto consumidor.
"[...] há uma discrepância grande entre a magnitude do problema (a dimensão avassaladora da crise ecológica) e, muitas vezes, as respostas das soluções que nos são propostas. "
No extremo oposto, existem outras soluções que nos dizem que só é possível uma resposta global, uma concertação a nível mundial (portanto em sede das Nações Unidas, ou em que fórum for). E é, muitas vezes, esquecida uma escala intermédia, que é fundamental: a escala nacional. No meu ponto de vista, o ecossocialismo está muito, ainda, preso à escala local e à democracia radicalmente direta e, por outro lado, ainda divaga demasiado na escala global mais macro, e tende a preterir esta escala intermédia que é a escala nacional, onde, do meu ponto de vista, reside a soberania democrática. E portanto, quando se fala de um projeto radicalmente democrático, tal como eu entendo que o ecossocialismo deve ter, é na escala nacional que podemos começar a atuar.
Vou responder a partir do ecossocialismo e de pensadores como o Michael Löwi, que, tendo como horizonte um projeto ecossocialista revolucionário, não exclui e, sobretudo, não desvaloriza os necessários passos incrementais, graduais e as pequenas vitórias - aquilo que vai sendo alterado, transformado dentro do sistema capitalista.
Esta é uma questão com a qual me debato também na minha própria investigação. Eu estudo democracia energética, penso a democracia energética também como sendo um objetivo futuro, um objetivo político ideal, não é? A nossa utopia revolucionária - o mundo pós-qualquer-coisa. Mas não podemos ignorar todas as etapas precedentes de construção, de institucionalização sociopolítica. Caso contrário, torna-se, para já, muitíssimo difícil de animar esta luta e este processo de transformação. É desmotivador, individualmente. E não é mobilizador do ponto de vista coletivo, ou seja, é fundamental atuar em todas as áreas.
Claro que eu almejo um projeto revolucionário, o que não significa que não acredite no necessário projeto institucional reformador através de instituições da democracia representativa, do nosso sistema eleitoral, ou seja, não questiono a existência de eleições, de títulos eleitorais. São passos necessários. Claro, é um processo moroso, é um processo frustrante, mas, se nós considerarmos todas as pequenas vitórias, o que é que isso implica? Mesmo para os movimentos sociopolíticos, para a justiça climática que está no terreno. Não desvalorizar todas essas pequenas conquistas, que até podem ser pequenas do ponto de vista global, mas que podem significar muito para as comunidades da linha da frente - é fundamental criar bolsas de resistência dentro do próprio sistema.
" [...] não podemos ignorar todas as etapas precedentes de construção, de institucionalização sociopolítica. "
E, sobretudo, só quando tivermos a força popular necessária - essa é a chave, pois não podemos fazer uma revolução se não tivermos um respaldo democrático, e esse respaldo democrático é-nos dado pela força das pessoas. Nós não podemos fazer uma revolução contra as pessoas. Por isso é que estas classes trabalhadoras, aliadas a outros movimentos sociopolíticos, são fundamentais, porque são a maioria da população. E, portanto, quando falamos de uma transição (seja para o que for: uma transição socioecológica, uma revolução ecossocialista e quando pensamos em justiça social ou em democracia), ao longo desse processo é fundamental incluir a maioria da população. Isso neste momento não está a acontecer quando olhamos, por exemplo, para a própria chamada “transição energética” em Portugal. Há uma atuação política que é, não diria totalmente, mas manifestamente discrepante da vontade popular e que está desconectada do quotidiano das pessoas. E, portanto, ecossocialismo: sim. Mas temos de olhar para os seus principais protagonistas, que são as classes trabalhadoras, e o que elas representam em todo este processo.
Tendo em consideração o carácter heterogéneo da classe trabalhadora portuguesa, numa economia baseada na exploração intensiva do trabalho, que alianças são necessárias para a construção de uma sociedade ecossocialista mais além de um horizonte ecoprodutivista?
Uma aliança ampla, uma lógica de frente popular, uma lógica de frente unitária fundamental. Não são só os proletários de todos os países que têm de se unir, embora quando consideramos outros grupos e outras minorias, por exemplo, (centrando só no contexto português) pessoas migrantes, racializadas, LGBTQIA+, pessoas que neste momento, infelizmente, não têm qualquer tipo de dignidade laboral (pessoas trabalhadoras que estão a ser exploradas, que não são reconhecidas enquanto cidadãs) - essas pessoas são fragmentadas, são consideradas minorias, mas elas têm uma grande característica em comum. Eu diria que a esmagadora maioria destas pessoas trabalha. E, portanto, é no elo deste eixo fundamental do trabalho que se pode criar uma lógica de frente e de aliança entre setores, entre causas, entre lutas. E fizeram um diagnóstico muito certeiro: toda a desregulamentação, toda a flexibilização do mercado de trabalho teve como consequência esta atomização dos trabalhadores. Existem cada vez menos oportunidades de organização coletiva, de mobilização, vemos como nos sindicatos (não comentando todas as lógicas de governação internas dos sindicatos, mas sabemos o seu papel fundamental na organização dos trabalhadores, na defesa dos seus interesses) estas novas lógicas são totalmente opostas e impedem, propositadamente, retirando o espaço para os trabalhadores se organizarem. E isso é um problema, porque sem ação coletiva e reivindicação não há pressão política e, portanto, não há mudança.
" é no elo deste eixo fundamental do trabalho que se pode criar uma lógica de frente e de aliança entre setores, entre causas, entre lutas. "
Por isso, é fundamental que causas aparentemente distantes e que neste momento estão, no meu ponto de vista, demasiado fragmentadas, se unam em torno de uma agenda comum. E essa agenda tem passado, por exemplo, em plataformas como a Vida Justa, pela união de causas que afetam o quotidiano das pessoas: a causa climática, obviamente, a habitação, e todos os outros direitos que estão constitucionalmente consagrados e que não são cumpridos - e que, a propósito, serão agravados e intensificados pela crise climática. Portanto, se quisermos até pensar numa espécie de guarda-chuva, a forma como a crise climática vai afetar o direito à habitação, à saúde, à educação… é fundamental unir estas causas. E isso tem vindo a ser feito, reconheço que tem havido um esforço, por exemplo, ultimamente com a plataforma da Vida Justa, de unir a luta pela paz, pela justiça climática e pelo direito à habitação. É importante. É importante porque quem trabalha e quem trabalhou é quem está a ser penalizado, não só por esta lógica capitalista neoliberal, como pelo agravamento da crise climática e, sobretudo, pelos seus efeitos até ao fim do século - que é até quando temos algum horizonte de projeção porque, a partir daí, é tudo demasiado imprevisível para sequer tentar projetar. E, portanto, alianças: sim.
Sobre a segunda parte da questão. Ora, o ecossocialismo é claro. O ecossocialismo conjuga precisamente a crítica marxista da economia política com os princípios fundamentais da ecologia. Portanto, nós não estamos a falar de uma reprodução do socialismo real. Não é disso que se trata. Estamos a falar de um socialismo expurgado precisamente dessa lógica extrativista e produtivista. A questão do decrescimento tem, talvez, um problema que é a própria designação. A palavra não é simpática, e não é só isso. A palavra “decrescimento” quase que remete para uma certa austeridade, como se tivéssemos de perder qualidade de vida, quando, na verdade, nós temos é que reconfigurar a forma como medimos a qualidade de vida (estamos a falar não só dos indicadores propriamente ditos), mas também melhorar as condições materiais para ter qualidade de vida. E aí está o ecossocialismo, tal como o decrescimento, que não é simplesmente uma diminuição - a expressão pode dar a entender isso.
"A palavra “decrescimento” [...] remete para uma certa austeridade, como se tivéssemos de perder qualidade de vida, quando, na verdade, nós temos é que reconfigurar a forma como medimos a qualidade de vida. "
Tem de haver um decrescimento de certos setores, obviamente, até uma extinção. Estamos a falar, por exemplo, da indústria fóssil, que vai ter de ser extinta, da publicidade que cria necessidades de consumo conspícuo e absolutamente artificiais. Esses setores vão ter de ser extintos num projeto ecossocialista. Estamos a falar de reduzir brutalmente setores como a aviação, a navegação, o armamento. Claro que todos esses setores vão ter de decrescer, mas há outros setores que terão de crescer, de se expandir, tal como o setor dos cuidados, a saúde, a educação, o setor agroflorestal, a agricultura com práticas condizentes com a sustentabilidade. E, portanto, o problema é que, de facto, nós medimos o crescimento por parâmetros que se vão tornar obsoletos no ecossocialismo. Porque vai haver crescimento, mas de setores que desejavelmente vão melhorar a nossa qualidade de vida. E há setores que se vão tornar inúteis, também porque estiveram na origem da crise climática e, portanto, terão de ser extintos. Mas outros terão de ser reconfigurados -a própria indústria terá de ser reconfigurada mediante planeamento para atender os critérios ecológicos e sociais, e não critérios de lucro.
Portanto, esta questão do crescimento e decrescimento, do meu ponto de vista, traduz-se no que acabei de dizer: há setores que vão ter de ser extintos, outros que vão decrescer brutalmente e outros que vão ter de se expandir. Para quê? Para que tenhamos mais tempo livre, mais tempo de lazer, mais tempo para atividades de recreio, culturais, desportivas… para tudo isso, e para que trabalhemos menos. Portanto, para que produzamos melhor e, sobretudo, para que as nossas necessidades materiais, obviamente, sejam satisfeitas, mas para que não haja lugar para consumo de bens de luxo absolutamente fúteis e cuja necessidade é, na verdade, criada unicamente num sistema que nos engole e que quase nos obriga, pela sua voracidade, a consumir constantemente.
Passando agora para uma leitura do contexto nacional mais imediato, de que maneira acha que a esquerda se pode afirmar perante um Parlamento composto por 50 deputados e mesmo um vice-presidente da Assembleia da República de um partido de extrema-direita?
Fazendo todos os prelúdios e todas as introduções que são comuns, aquilo que está a acontecer em Portugal não é diferente do que já aconteceu no resto da Europa. Para além da extrema-direita, temos também um suposto centro-direita que se está a radicalizar e que está a ir ao encontro, de forma cada vez mais acelerada, da extrema-direita. E aqui não falo sequer das questões climáticas ; falo, por exemplo, daquilo que aconteceu com a notícia terrível que tivémos, de um ex-primeiro ministro do PSD (não por acaso o “pai político” do Chega, portanto, não deveria ser surpreendente que acredite nos horrores que o partido defende) [Nota de Editor: A 8 de abril de 2024, Pedro Passos Coelho apresenta o seu livro Identidade e Família – Entre a Consciência da Tradição e As Exigências da Modernidade, onde ataca “a ideologia de género” e “a cultura de morte”].
" [...] temos também um suposto centro-direita que se está a radicalizar e que está a ir ao encontro, de forma cada vez mais acelerada, da extrema-direita. "
Em todo o caso, a extrema-direita coloca-nos ameaças. Não só à democracia enquanto regime, como também naturaliza o discurso de ódio que terá, parece-me, consequências materiais extremamente graves. Esta banalização do discurso de ódio… de repente já não há travão, não há filtro. Aquilo que antes as pessoas pensavam e guardavam para si, agora sentem-se legitimadas a expressar em público. Essa censura social em relação ao discurso de ódio está a decrescer. E não se trata só de violência simbólica. Acho que este discurso confere respaldo à violência física inter-pessoal, como aquilo que assistimos em declarações de João César das Neves [no livro referido acima], nas quais vemos uma relativização da violência doméstica. Isto, obviamente, dá respaldo a perpetradores de violência doméstica e de violência de género. Isto é um retrocesso grave, porque há um efeito bola de neve. É uma rampa deslizante.
Em abril deste ano assistimos a um fait divers absolutamente ridículo por causa do logotipo da República Portuguesa. Questões dessas vão ser cada vez mais empoladas para nos distrair das reais consequências da ascensão da extrema-direita. Eu gostava de, nesse momento, estar a discutir questões substantivas como as escolhas de Ministros e Secretários de Estado. Ainda não tive tempo de analisar com detalhe o perfil de cada novo (a) Secretário(a) de Estado, mas, por exemplo, temos sinais evidentes, completamente flagrantes, de retrocesso: desde logo o Ministério do Ambiente, que mudou de designação - o clima cai - o que denota uma mudança drástica de prioridades. Por exemplo, a Secretária de Estado da Energia, curiosamente, é engenheira de minas… Portanto, quando vejo, (perdoem-me, mas talvez seja uma correlação forçada… isto é mera especulação) uma engenheira de minas à frente da Secretaria de Estado da Energia, tendo em conta todas as controvérsias em torno da mineração de lítio em Portugal, vai ter como prioridade o quê? A mineração. Posso estar redondamente enganada e espero que sim. Vimos, por exemplo, as florestas a saírem do Ministério do Ambiente e a passarem para a Agricultura. Houve, assim, umas mudanças aparentemente subtis, mas em política a forma é conteúdo. Quando transferimos uma Secretaria de Estado de um Ministério para o outro, significa que estamos a dar mais prioridade a um ou outro assunto.
" [...] temos sinais evidentes, completamente flagrantes, de retrocesso: desde logo o Ministério do Ambiente, que mudou de designação - o clima cai - o que denota uma mudança drástica de prioridades. "
Estou muito curiosa para perceber, em matéria de energia e clima (que é sobretudo o que eu acompanho na minha investigação), como é que a extrema-direita se vai posicionar, dando apoio ou não às propostas de Governo. Devo, aliás, referir que o programa do Chega, em matéria de transição energética, é um programa que refere aspetos como a soberania, que é aliás uma palavra que eu mobilizo recorrentemente nas minhas intervenções públicas. Mas é uma palavra que a extrema-direita captura e, portanto, passa a ter uma conotação negativa. Também acho importante que exista soberania energética, provavelmente não pelos mesmos meios do Chega. Então é importante que palavras como “soberania” sejam novamente trazidas para o campo da esquerda. Mas isto para dizer que o Chega acompanha uma tendência da extrema-direita europeia, que é a da defesa da energia nuclear, por exemplo.
Portanto, eu estou muito curiosa para ver como vão ser, para já, as portas giratórias entre a política e o setor energético, quem estará no topo da APA, ERSE, DGEG, o que for. Como é que projetos extremamente polémicos como a mineração de lítio, o hidrogénio verde, as mega-centrais fotovoltaicas se irão desenrolar. Estou, também, muito curiosa para perceber se a extrema-direita vai aproveitar e tentar capturar movimentos locais de oposição a, por exemplo, mega-centrais fotovoltaicas, e tentar inflitrá-los como negacionistas do clima, porque isso acontece. Lutas legítimas contra mega-centrais fotovoltaicas que vão destruir ecossistemas, biodiversidade e modos de vida locais, podem facilmente tornar-se um chamariz para a extrema-direita negacionista. Porque “se vocês são contra as renováveis é porque são a favor dos fósseis”. Há esta ambiguidade, a este perigo.
Por isso é que tento reforçar este ponto. A transição energética tem de ser justa. Não é uma mera substituição tecnológica. Caso contrário desatamos a tapetar o Alentejo de mega-centrais fotovoltaicas em nome da transição energética… Realmente nós substituímos a fonte, mas em que é que isso altera, por exemplo, as relações sociais de propriedade? O que nós vemos neste momento são grandes empresas, mais uma vez “maquilhadas” de verde… as empresas que dominaram na era fóssil estão, neste momento, a dominar esta suposta transição energética que, na verdade, é mais uma expansão energética do que outra coisa.
"A transição energética tem de ser justa. Não é uma mera substituição tecnológica."
Portanto, estou muito curiosa para ver como é que a extrema-direita se vai posicionar nestas questões, embora me pareça que o governo do PSD não precisa da “ajuda” da extrema-direita para falhar redondamente. Eu acho que eles conseguem fazer isso sozinhos.
Como avalia a política ambiental e energética vigente, que foi implementada ao longo dos últimos governos do PS?
Bom, o discurso do PS é muito interessante. Eu tive a oportunidade de participar num projeto com colegas da Universidade de Coimbra, do Centro de Estudos Sociais, em que analisámos os debates parlamentares entre, creio, 1990 e 2019. Foram três décadas sólidas de análise de debates parlamentares. E o discurso consistente do PS é que “Portugal é líder”, “Portugal é um exemplo”, “Portugal está na vanguarda”, “Portugal foi o primeiro país a comprometer-se com as metas para a neutralidade carbónica” primeiro para 2050 e, no ano passado, antecipou para 2045 (foi anunciado no projeto de revisão do Plano Nacional de Energia e Clima). “Portugal tem as metas mais ambiciosas da União Europeia”, seja na incorporação de renováveis na produção de eletricidade, seja no hidrogénio verde, seja no solar descentralizado, todas as metas do Plano Nacional de Energia e Clima original (portanto, de 2019 ou 2020) e a sua proposta de revisão do ano passado… de facto, existe, aqui, uma ambição redobrada nas metas. Este é o discurso do PS. É um partido que sempre quis colocar-se na vanguarda e que sempre quis que Portugal servisse de exemplo para os restantes países europeus.
De facto, respalda-se de coisas que, na verdade, aconteceram, nem sempre em nome da transição energética, como por exempo o encerramento antecipado das centrais termoelétricas a carvão. Isso foi anunciado como uma grande vitória e como sendo de um grande arrojo, mas na verdade as centrais já não eram lucrativas, caso contrário não teriam fechado. Continuamos a saber que estas decisões são tomadas pelas empresas que são proprietárias dessas centrais e isso é um problema. Foi um problema para o PS, continuará a ser um problema para os governos seguintes.
O governo português, seja ele qual for, não tem total controlo sobre o setor energético, porque não existem empresas públicas. Portanto, a produção, a distribuição, o transporte, a comercialização da eletricidade e de gás natural, estão sob a alçada de empresas privadas. E isso é e foi um problema para o PS, já para nem sequer tecer comentários acerca das suspeitas em torno de projetos que sabemos que conduziram à queda do governo - relacionados com a mineração de lítio, com o hidrogénio verde. Excluíndo essas polémicas (e a justiça fará o seu curso), as notícias já eram graves, porque a expansão energética que estamos neste momento a verificar não obedece a quaisquer critérios de planeamento.
Se quisermos verdadeiramente discutir e prosseguir uma ação consequente em torno da transição energética é necessário um serviço público de energias renováveis. É muito difícil conceber uma transição energética que esteja totalmente dependente de empresas privadas, seja na produção, seja na distribuição (caso da E-redes, que é quem controla a distribuição em baixa, média e alta-tensão), seja no transporte. Empresas absolutamente estratégicas num setor fundamental, como a EDP e a REN, foram privatizadas durante a Troika (embora o processo de privatização da EDP seja anterior e mais complexo, mais demorado, e tenha culminado em 2012). Mas, em todo o caso, foram empresas que foram privatizadas, deixando, assim, o setor energético e a transição energética à mercê dos interesses e dos objetivos de lucro a curto-prazo de empresas privadas.
"[...] é necessário um serviço público de energias renováveis. É muito difícil conceber uma transição energética que esteja totalmente dependente de empresas privadas, seja na produção, seja na distribuição. "
As infraestruturas são absolutamente estratégicas num país. Seria fundamental retomar o controlo sobre este setor chave. Caso contrário, as empresas terão muito pouco interesse em acelerar a transição energética, a não ser, obviamente, que isso represente enormes ganhos, como é o caso do grande solar fotovoltaico, que é o que vemos a acontecer. De repente, a tecnologia solar fotovoltaica é muitíssimo competitiva, muito mais barata em comparação há uma década, e, supostamente, temos espaço.
É sempre utilizado o discurso da desertificação, desta falta de atratividade dos territórios do interior, da ruralidade esquecida e deprimida… tudo isso são desculpas ótimas para que a transição energética (que na verdade não é a transição energética, é a produção de energia renovável) seja vendida como uma ótima oportunidade para aquelas regiões. Quando sabemos que está ainda por provar, por exemplo, os benefícios em termos de economia local quando falamos da geração líquida de emprego. Não sabemos se estas tecnologias vão trazer emprego para essas regiões. Haverá, certamente, emprego altamente certificado no que diz respeito à parte mais técnica do desenho, dimensionamentos… tudo isso exige competências técnicas de engenharia. Claro que se está a criar todo um ecossistema de empresas, por exemplo, instaladoras, quando pensamos no solar fotovoltaico. Há várias pequenas e médias empresas que cumprem esse papel fundamental, mas são empresas que não estão fixadas nessas regiões. Não há criação de valor líquido naquelas regiões. Em contrapartida, pode haver perdas. Perdas em termos de ecossistemas, biodiversidade…
Fica sempre a questão “a transição energética é para quem?”, porque as pessoas legitimamente questionam. O governo PS apresentou essas metas e afima que, para as cumprir, são necessárias aquelas centrais específicas. Mas as pessoas questionam: “mas para onde vai aquela energia, afinal?”; “E, realmente, se nós estivermos a produzir esta energia renovável aqui, isto significa que já não estamos a importar energia fóssil?”; “Esta energia que está a ser produzida na nossa região vai servir para suprir necessidades locais? Ou vai alimentar indústrias, por exemplo, petroquímicas no polo de Sines? Ou uma cimenteira em Setúbal? Ou grandes explorações agrícolas, de agricultura intensiva?”; “Afinal, para quem é esta transição energética? Para que setores?”. Essas perguntas continuam por ser respondidas. Por exemplo, as próprias empresas (até as mais poluentes) têm os seus roteiros de neutralidade carbónica, têm todo o discurso de redução da pegada… Claro que podemos assistir a uma transição em que estamos a expandir brutalmente a produção de energia renovável para alimentar indústrias que são inerentemente nocivas. Isso pode acontecer. E aí há que fazer as questões “mas afinal quais são os usos legítimos das energias renováveis?”; “Nós, de facto, queremos eficiência, queremos usos mais controlados da energia e vamos continuar a desperdiçá-la em agricultura hiperintensiva, ou em indústria?”.
Estas são as questões, porque a transição energética justa e sustentável não pode, do ponto de vista ecológico e social, servir apenas para continuar a alimentar o mesmo modelo económico. Exige essa tal transformação integrada. A energia tem de estar ao serviço de uma economia planeada. E esta palavra é chave: planeamento. E raramente se ouve, tal como a palavra “soberania”, quando falamos em escalas de atuação política. “Soberania” e “planeamento” são duas palavras que (e contra os ecossocialistas falo) são pouco utilizadas e têm uma conotação muito negativa, porque associamos sempre às economias planificadas, socialistas, quando não é disso que se trata de todo. Aqui, falamos de planeamento ecológico, de planeamento democrático.
Portanto, a nota do PS é uma nota de discurso vazio que, na prática, continuou a deixar que as grandes empresas, como a EDP, liderassem a transição para as renováveis.
Como define a política da União Europeia para a transição ecológica e como é que esta impacta Portugal, seja de forma positiva ou negativa?
A União Europeia lançou o Pacto Ecológico Europeu. Mais uma vez é um pacote legislativo com várias estratégias setoriais que vão da biodiversidade ao hidrogénio verde, economia circular, indústria,... portanto, uma panóplia de setores com o objetivo de tornar o bloco europeu neutro no clima. Este é o grande discurso. O discurso da economia verde, em que é possível desacoplar as emissões de gases com efeitos de estufa do crescimento económico; segundo o qual é possível continuar a crescer de forma eficiente, ou seja, utilizando menos energia, menos recursos naturais. É a cartilha neoliberal aplicada à transição ecológica. Portanto, mantém-se a lógica de dispositivo de mercado, por exemplo, o comércio de licenças de emissão, tudo isso. E, uma vez mais, a União Europeia tenta assumir-se e colocar-se na vanguarda - “Vamos ser o primeiro continente neutro no clima”. E, de facto, se compararmos, por exemplo, as metas de incorporação de renováveis na União Europeia com as de outras regiões, a leitura que se pode fazer é que elas são aparentemente ambiciosas. Mas depois, há os instrumentos efetivos que os Estados-membro têm para efetivar essa transição climática (também é uma expressão muito utilizada a nível europeu, a “transição climática”).
"Este é o grande discurso. O discurso da economia verde, em que é possível desacoplar as emissões de gases com efeitos de estufa do crescimento económico; segundo o qual é possível continuar a crescer de forma eficiente, [...] utilizando menos energia, menos recursos naturais. "
Quando os Estados-membro da União Europeia continuam a estar constrangidos por limites de dívida pública e de défice, é muito difícil cumprir esses limites e simultaneamente ter margem de manobra suficiente para implementar quaisquer ações consequentes que nos conduzam à tal concretização da neutralidade climática - que também é uma expressão bastante obscura que eu ainda não consegui perceber exatamente em que consiste. Porque a ideia da neutralidade carbónica não é que, de repente, haja emissões zero de gases de estufa. É que as emissões líquidas sejam neutras. Nós temos que ter reservatórios sumidores de carbono suficientes para garantir que o impacto é neutro. Não significa que vamos deixar de emitir, significa que vamos conseguir captar essas emissões e, portanto elas não terão um impacto. Essa é a ideia. Através da tecnologia, através de reflorestação, etc.
Mas voltando aos instrumentos dos Estados-membros, a concretização do Pacto Ecológico Europeu implicaria desbloquear centenas de milhões de euros nos próximos anos só para cumprir os objetivos a que a União Europeia se propõe. E eu pergunto: como é que os Estados-membros conseguem, estando amarrados por estes coletes de força da dívida pública e do défice, mobilizar e alocar o financiamento necessário à "transição climática" ? Como é que se consegue ser o bom aluno da Europa e fazer investimentos públicos, que seriam absolutamente cruciais, por exemplo, na expansão e modernização da rede elétrica, na ferrovia, na renovação de todo o parque habitacional, na reabilitação e na renovação energética? Há que responsabilizar o governo do PS a uma tendência em associar transição energética a produção de energia renovável. Não por acaso, desde o governo Sócrates que a produção de energia renovável (e ainda bem, atenção) é tão valorizada. Mas é impressionante como há esta coerência discursiva do PS desde há algum tempo: o importante é instalar, a capacidade instalada. Mas a transição energética não é só alterar a forma como produzimos energia. É também consumir menos, preferencialmente, de forma mais eficiente, e isso implica todo um conjunto de obras muitas vezes invisíveis (o mesmo, por exemplo, para a água) que são absolutamente fulcrais e que, realmente, teriam um impacto no nosso quotidiano.
"Mas a transição energética não é só alterar a forma como produzimos energia. É também consumir menos, preferencialmente, de forma mais eficiente [...]."
Portanto, quando nós falamos de uma transição energética que seja justa, ela deveria ser simultaneamente uma transição e benéfica para o dia-a-dia de cada um(a) de nós. Estes investimentos públicos (como eu já disse: ferrovia, modernização da rede elétrica, transportes públicos) não são as empresas privadas nem os agregados familiares que os podem fazer. É necessário investimento público e isso é um enorme tabu porque é mais fácil continuar a dominar o debate em torno das questões da produção de energia renovável. Porque aí, de facto, há uma alteração visível. Na própria paisagem nós vemos que há uma alteração material. Andamos pelo país e vemos parque eólicos, centrais fotovoltaicas, e vamos começar a ver, provavelmente, dentro de alguns anos, parques eólicos off-shore. Essas alterações são visíveis e dão elementos aos governos para dizer “Nós estamos a atuar”. Mas tudo o resto ficou para trás, porque é preciso investimento público para combater a pobreza energética. Porque ao mesmo tempo que renovamos um edifício, nós estamos não só a melhorar o seu próprio desempenho energético (tornando-o mais eficiente), mas também o conforto térmico, melhorando a saúde e o bem-estar de quem nele habita.
Os impactos escondidos das alterações climáticas e de que nós ainda não falamos, como o impacto das ondas de calor na saúde, na produtividade - isto para trazer aqui uma questão que é sempre tão cara aos economistas, a produtividade… As ondas de calor têm impactos na criminalidade, na saúde física e mental, na produtividade. Já para não falar, obviamente, no facto de termos de tornar as nossas infraestruturas (outra palavra que é muito utilizada na economia ambiental) mais resilientes. Temos que ter infraestruturas que aguentem impactos de fenómenos climáticos cada vez mais extremos. E, uma vez mais, isso exige investimento público.
Portanto, essa é a enorme dissonância cognitiva. A enorme discrepância entre as metas da União Europeia via Pacto Ecológico Europeu, e os instrumentos efetivos que existem à escala nacional para implementar medidas consequentes.
Para terminar, qual é, na sua visão, o papel da juventude na educação e no combate à crise ecológica? E como podemos encorajar os jovens a participar politicamente?
Eu acho que não é só a juventude que tem de ser encorajada a participar politicamente. Aliás, tenho alguma dificuldade em enquadrar o debate através desta lente geracional, porque normalmente isso cria uma falsa dictomia, não é? O “nós” e o “eles”, os “jovens” e os “mais velhos”. Uma vez mais é reproduzir a ideia de que houve uma geração mais velha que nos deixou o planeta no estado em que ele se encontra atualmente. Quando na verdade não é uma questão geracional, é uma questão de classe, de classe social. É importante desmistificar isso. A culpa não é dos mais velhos. A culpa até pode ser dos mais velhos, mas sobretudo se eles forem ricos.
Essa é a primeira questão. A questão geracional… mesmo nas gerações mais novas, nós não estamos todos no mesmo barco. E, uma vez mais, o que é que nos vai diferenciar? As nossas habilitações literárias, claro, trajetórias académicas, ocupações profissionais, o nosso salário… Tudo isso nos vai dar ferramentas para lidar com os impactos e com a transição, por exemplo, através da adoção individual de estilos de vida mais consonantes com a ação climática. À partida pessoas mais informadas… Ou não! Há aqui, também, um viés cognitivo, não é? Nem sempre mais informação é sinónimo de mais ou melhor atuação, sobretudo ao nível individual. Às vezes também vemos isso - como o excesso de informação negativa pode ser absolutamente paralisante e causar ecoansiedade, portanto, nem sempre o facto de sabermos mais sobre este gravíssimo problema nos vai tornar necessariamente mais proativos. Até nos pode bloquear.
"É importante desmistificar isso. A culpa não é dos mais velhos. A culpa até pode ser dos mais velhos, mas sobretudo se eles forem ricos. "
O importante é, então, ter um projeto político de esperança. Porque eu acho que os projetos políticos, para serem mobilizadores, têm de passar uma mensagem de esperança, sobretudo falando da juventude. Se nós apresentamos um quadro absolutamente catastrófico... Não estou a dizer que ele não é real, porque, de facto, toda a evidência científica aponta para uma trajetória em que os cientistas só estão a pecar por defeito. Logo, tudo aquilo que nos parece grave será ainda mais grave. A evidência científica diretamente transposta para o discurso político é que não funciona. Não é mobilizadora. Mas também digo outra coisa: as pessoas podem mobilizar-se pela raiva, pelo descontentamento, pela frustração e pelo absoluto desespero. Mas depois tem de haver o passo seguinte. E o passo seguinte é, de facto, projetos políticos que ofereçam uma alternativa. Não é só a educação… no início dos anos 2000 falava-se muito de sensibilização, consciencialização, literacia, tudo isso… Mas percebeu-se que era um discurso neoliberal que tenta responsabilizar os indivíduos por um problema que não é causado, uma vez mais, por toda a humanidade. É uma forma de despejar em cada um de nós… É impossível… É impossível e isso desencoraja, claro. Se existe um discurso moralista que culpa cada pessoa pelas alterações climáticas e depois atribui toda a responsabilidade pelas soluções… é demasiado difícil.
Com isto não estou, obviamente a desresponsabilizar-nos. Não significa que não tenhamos obrigação de agir. Agora, eu acho que essa ação é muito mais profícua se for coletiva, através de movimentos sociais e políticos organizados.
Ainda assim, gostava que os partidos políticos oferecessem um discurso mais consonante com as preocupações das gerações mais jovens, sejam o clima ou a habitação, porque de facto é importante, parece-me, juntar as duas coisas. O fim do mês e o fim do mundo são a mesma luta. Porque, se o mês é demasiado comprido para o salário, então quem é que vai ter disponibilidade mental, vontade, ânimo para lutar pelo que quer que seja? Por isso, uma vez mais, a lógica do que falávamos há pouco, das alianças, das frentes, de unir causas.
"O fim do mês e o fim do mundo são a mesma luta."
A juventude mobiliza-se se lhes for dado crédito, por um lado, se forem reconhecidas como legítimas as suas reivindicações, se não for infantilizada e, sobretudo, chamada de juventude [ri-se], como eu acabei de fazer. Porque há aqui prolongamento desta juventude, que já não é juventude aos quarenta e, no entanto, há uma eterna infantilização que também tem a ver com todas estas dificuldades: não podermos sair de casa dos pais, sermos precários, enfim. Portanto, é uma juventude que quer ser adulta, na verdade, que quer ter o direito a ser adulta.
Sobre a entrevistada :

Vera Ferreira é doutoranda em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Os seus campos de interesse incluem a democracia energética, a energia renovável comunitária e as transições energéticas justas.
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