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Democracia dos processos reflexivos para a Diversidade Género

Foi lançado o repto para a construção de um artigo acerca do tema Igualdade de Género. Escrever sobre este, mais do que tema, propósito, cada vez mais fraturante e polarizado, só faria sentido tendo por base a epistemologia feminista, especificamente numa lógica partilhada, de debate, amplamente reflexiva. Nesta senda, surgiram as Tertúlias do Botequim, em homenagem aos burburinhos revolucionários que outrora preenchiam a atmosfera portuguesa, em tertúlias ora boémias ora sérias, neste espaço imortalizado por Natália Correia.


Um repto gerou outro, e aqui estamos hoje a escrever a duas mãos em forma de metáfora. Uma metáfora que traduz um ato de resistência à fragmentação dos movimentos feministas pelo espaço e pelo tempo. Pois, por mais que nos seja mais fácil escrever sós, com a nossa linguagem própria, no nosso espaço, ao nosso tempo, com as nossas visões individuais das coisas, sabemos que escrever em diálogo só acrescenta e só nos acrescenta. As referências, as perspectivas, as leituras, as visões que flutuam entre a diferença e a semelhança confluem em algo sempre maior, do que uma ângulo unilateral. E é propósito deste artigo também, lembrar que as diferenças se debatem e constroem e que não se atacam e autodestroem.

O caminho só pode ser feito numa lógica de reflexividade contínua e comum, sendo precisamente esta uma das bases desta epistemologia feminista onde nos posicionamos, que visa a transformação social através do estudo das pessoas inseridas no meio a que pertencem, a partir de um prisma que equaciona as suas pertenças identitárias e pertenças sociais. Em contraponto, as epistemologias tradicionais, baseadas num modelo androcêntrico, explicam a ordem, produzem conhecimento individualizado, sem atender à inegabilidade de uma estrutura e poder desigual, especificidades étnicas, sociais e culturais. O poder e a reflexividade são dois grandes pilares das teorias feministas. Aceitar que existe poder desigual entre quem investiga e quem é investigado/a, é perceber que a investigação colaborativa abre caminho para uma reflexividade necessária que luta contra um olhar académico influenciado por representações sociais de quem investiga e pensa sobre processos de poder diferenciados. A reflexividade contempla a subjetividade existente quando se investiga e questiona a ciência da “tábua rasa”, objetiva e livre de valores. Assim, reflexividade é um processo flexível, contextualizado, amplamente participativo e, preferencialmente, com forte envolvimento educacional comunitário.

É nesta lógica que defendemos a Democracia dos processos reflexivos para Diversidade Género. Ousamos usar o termo Diversidade de Género em vez de Igualdade de Género, embora não em detrimento. Pensar e desenhar respostas para a uma diversidade de expressão que é muito mais ampla que a estrutura binária de género. Talvez seja esta a primeira reflexão que vos/nos propomos fazer. Ousamos desconstruir para reconstruir? Ousamos nos envolver na mudança ou deixamos tudo nas mãos de um sistema capitalista, que favorece poucos/as, nos ensina a consumir, a destruir, a sobreviver e nos dita como viver….


"O poder e a reflexividade são dois grandes pilares das teorias feministas. Aceitar que existe poder desigual entre quem investiga e quem é investigado/a, é perceber que a investigação colaborativa abre caminho para uma reflexividade necessária que luta contra um olhar académico influenciado por representações sociais de quem investiga e pensa sobre processos de poder diferenciados. "


Quando optamos por diversidade de género, não é por pretensão de o desfazer, tão pouco ignorar ou invisibilizar as lutas históricas e as conquistas alcançadas a partir do lugar de violência e opressão, resistência e luta visceral, socialmente construído numa lógica de exploração, impingido às mulheres. Pelo contrário, é justamente por reconhecer a opressão das mulheres e por reconhecer o seu motor binário que pretendemos enfatizar as lutas categóricas para que depois seja possível abrir as suas caixas de pandora.

Falar de igualdade de género enquanto conceito não cabe a todas as lutas, porque a terminologia foi construída num paradigma binário, onde existe sempre uma dinâmica de poder e submissão, explorador/a e explorado/a, norma e desvio. Esta binariedade faz a manutenção do sistema opressor. A categorização permite a desvalorização, desqualificação e desumanização de um grupo aglomerado a grosso modo por determinadas características estereotipadas em comum, forçadas ou desenhadas. Este é o fenómeno que por fim vai permitir a sua exploração. Isto acontece tanto nas construções de género, como nas questões da sexualidade, da etnia, da racialização ou da classe, ou de tudo ao mesmo tempo, ou algumas em simultâneo, que é o que cria o combo da interseccionalidade de vitimações perante a estrutura. Então lutar pela igualdade de género, desmantelar o patriarcado no seu âmago, só será possível a partir da desconstrução binária e através do reconhecimento das liberdades individuas e da diversidade.

Entendemos a diversidade como um termo que abraça a multiplicidade de especificidades de géneros existentes, agrega, respeita e incentiva a liberdade individual plena. A igualdade compete, pretende nos colocar a todas/os no mesmo pé de igualdade. A Diversidade respeita, pressupõe equidade e a aceitação que somos efetivamente distintas/os. E que bonito que isto é!


Sabemos no entanto que não podemos dar um passo maior que a nossa perna, e que esta nova realidade só será possível no futuro, se no presente lutarmos por uma democracia da reflexividade, do conhecimento, da informação, que nos permita primeiro o reconhecimento comum das opressões. Só assim serão possíveis as suas desconstruções, para que por fim exista espaço para a construção de uma individualidade mais livre. Esta luta não pode ser uma luta minha, ou só nossa, sós também na nossa companhia, ou vossa em nicho, mas uma luta comum dos nossos “eu’s” e dos nossos “nós”.

Somos ensinadas/os que a felicidade advém do esforço individual e não coletivo, o presente é vivenciado como algo absoluto (já e agora), não havendo grande espaço para o futuro. O lugar do tempo para refletir sobre nós ocorre à mesma velocidade do nosso quotidiano. Potencia-se o enamoramento pelo consumo, pelo caminho individual de cada pessoa, a ideia romantizada de que se nos esforçarmos muito no fim da jornada alcançaremos o que desejamos. O problema é que o que desejamos é socialmente e temporalmente construído. Construir através da lente da diversidade, do envolvimento coletivo. Semear sementes de flores que revolucionam e desconstruir muros que segregam e lentamente nos matam. Ousamos?


“Roubamos” as palavras a Eduardo Duque (2014), que no artigo intitulado É possível sair do presente? Uma teoria prospetiva escreveu:


“as políticas estão voltadas para o presente, têm um olhar curto, atendem ao urgente e não prioritário. E sabemos bem que o prioritário tem um horizonte bem mais dilatado do que a miopia do urgente, em que tudo tem de ser resolvido no imediato, numa aceleração tamanha que tende a anular qualquer pensamento ou reflexão."


As políticas públicas são reativas e não potenciam a transformação social. Há um direcionamento atualmente para agendas feministas neoliberais. Estas medidas europeias neoliberais servem a quem? Centram-se em dar respostas às mulheres e partem da premissa que as discriminações de género derivam essencialmente da falta de acesso às mesmas em posições sociais/trabalho que os homens. Mesmo quando reduzimos a igualdade de género ao binómio homem x mulher, a quem serve esta política? A que mulheres? A todas? Qual o impacto destas medidas nos homens? Qual o seu potencial de transformação social? As políticas (necessárias) dão respostas imediatas e paliativas a problemas sociais complexos, multidimensionais, consubstanciais e interseccionais, como é o caso das problemáticas da Igualdade de Género, ou, como defendemos, da Diversidade de Género. Como pensar as questões relacionadas com esta temática? Acreditamos que o primeiro passo será através da democratização do conhecimento e consequentemente da reflexão. Democratizar a reflexão significa responder às mesmas perguntas a partir dos mesmos prismas? Dos mesmos autores? Das mesmas teorias? De uma só realidade social e económica? De um modelo biológico e binário?


Urge a necessidade de implementar verdadeiramente uma democracia, e não uma tentativa de democratizar algo num sentido hierárquico. A democracia da reflexividade está intrinsecamente relacionada com a democracia do conhecimento e da informação. Muitas pessoas dirão que a informação nunca foi tão democrática como agora, o que mesmo no senso comum e a um nível superficial é bastante discutível. Aprofundando ainda a questão, reconhecemos quase automaticamente que estamos numa ditadura do conhecimento, embrenhados em políticas que trabalham o nosso acesso a este como se fosse um Santo Graal. Conhecimento esse desenhado pelos poderes opressores sociais, que nos oferecem guiões para os nossos fados. Isto é, ter acesso ao conhecimento é hierárquico, como aceder a algo que não me pertence e do qual eu não faço parte. O acesso não traduz ainda inteligibilidade. Existem várias questões que poderiam ocupar toda a revista, como: a segregação teórica das academias, que são organismos fechados em si; a lacuna na tradução da ciência para uma implementação social, o avassalador excesso de informações não fundamentadas e instantâneas, entre outras. Mas aqui, o que importará questionar é: Onde reside o poder? Onde reside o conhecimento e o tempo para a reflexão? Quem são as pessoas por detrás da produção teórica? Europeias, americanas, maioritariamente, homens brancos heterossexuais. Existe um monopólio deste conhecimento por esta fação que desconhece outras realidades. Surgem ainda outras questões pertinentes como: A América Latina, África, Ásia, não estão a produzir conhecimento teórico e científico em volta destas temáticas? Porque é que não estão nos programas académicos se há essa produção? E se não há, qual o motivo? É um novelo para desenrolar que conduz sempre ao mesmo ponto: a dinâmica capitalista e imperialista numa estrutura colonial e patriarcal. Não esquecendo nunca que a produção teórica é também um negócio.

"Onde reside o poder? Onde reside o conhecimento e o tempo para a reflexão? Quem são as pessoas por detrás da produção teórica? "

Pensar as questões de género implica agir aqui e agora, mas também perspetivar transformações societais que se consubstanciem em inquietações coletivas, em mudanças culturais efetivas. No momento atual, em que se discute sobre o tema mediaticamente, algumas vezes de modo dogmático e extremado, onde fica a transformação social? As mudanças de atitudes sociais de base discriminatórias e preconceituosas acontecem por decreto? Através de lutas mediáticas? Ou só a democratização da informação, dar visibilidade a quem é discriminada/o, dar tempo para que cada uma e cada um reflita sobre a sociedade poderá ser verdadeiramente transformador?

Almada Negreiros (1921/2007) celebrizou um dito que me destroçou: Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade. Ora quando Almada Negreiros morreu nós tão pouco estaríamos nos planos do arquétipo mundano. E qual inquietude de Mário Branco, dançou cá dentro de mim durante algum tempo. Que faria eu, se só tinha palavras para escrever? Como se o destino da humanidade estivesse nos meus ombros, qual narcisa em espelhos de água. Mas essa dança inquieta hoje não é mais uma dança só, é uma dança partilhada, e nessa partilha descobrimos que ainda concordando com Almeida Negreiros, discordamos. As palavras, as frases, os poemas, os textos, os artigos que podem mudar o mundo ainda não estão todos escritos, nem ditos, ou declamados, quanto mais representados. Isso seria assumir que o conhecimento é finito e acaba. O conhecimento não é irrefutável, e as verdades não são absolutas, tão pouco intemporais. E desde a morte de Almada Negreiros muitas outras palavras foram teorizadas que mudaram o paradigma social, e muitas outras serão ainda prolongamentos deste, até à sua rutura total.

Nesta frase que ecoa através das décadas, percepcionamos também a nossa desresponsabilização diária, do eu pequeno, do eu reducionista, da nossa inutilidade perante a estrutura, e não nos iludamos, que pequenas e pequenos somos perante a frustrante imobilidade do poder opressor. Mas na nossa língua acutilante trazemos sementes de cravos revolucionários, e por mais que os nossos dedos estejam já gastos de escrever palavras no vazio, continuamos, porque não só na assembleia da república se faz política, a mudança também começa na mesa de café, em cada um dos nossos botequins.


Não vejamos nunca, não mais, no silêncio um álibi, vejamos no silêncio o que ele é, uma cumplicidade com o sistema opressor, e por isso, Almada, continuamos a escrever em ganas resistentes e radicais: revolução.









Referências Bibliográficas:


Araújo, E.; Duque, E.; Franch, M. & Durán, J. (eds) (2014).Tempos Sociais e o Mundo Contemporâneo - As crises, As Fases e as Ruturas .Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho . pp.154-164


Almada Negreiros, J. (2007). A invenção do dia claro. Project Gutenberg. (Publicado originalmente em 1921)




 

Sobre as autoras:


Coletivo Tertúlias do Botequim


Patrícia Cruz, "Insistente Social".

Licenciada em Serviço Social pela Universidade Católica de Braga com intercâmbio na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis Brasil; Especialização em Igualdade de Género |Mestranda em Sociologia do Género e Sexualidade na Universidade do Minho; Pós-graduação em Criminologia e Intervenção Social pelo Instituto para a Formação Humana e Social; Consultora Social.

enho especial interesse na área da Igualdade de Género, Epistemologia Feminista e Cooperação. Adoro aprender e pensar em diferentes formas de resolver problemas. Sou apaixonada por pessoas (excetuando as fascistas, machistas, xenófobas, individualistas, autoritárias, capacitistas, as da caridadezinha, etc…) animais, fotografia e ler. Contudo, a garantia dos Direitos Humanos, a luta contra a desigualdade social e ecológica guiam-me.



Vânia Alves, Mestranda em Sociologia do Género e da Sexualidade, licenciada em Sociologia pela Universidade do Minho, formada pela Associação Plano i como técnica de apoio à vítima, lojista.

Feminista e todas as consubstancialidades que ser feminista acarreta.

Interessa-me a arte e a cultura como base do desmantelamento do preconceito enraizado e fomentação da compreensão da amplitude social na sua diversidade. Acima

de tudo, com mais questões do que opiniões, sempre.

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