Salgueiro Maia – entre o legado e a memória
- Andreia Martins

- 3 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Falar de Portugal é falar de revolução.
Falar do Estado Português, moderno e democrático, é falar dos homens e mulheres que, pelo preço da própria vida, se insurgiram contra a tirania e estabeleceram o direito à liberdade. Homens e mulheres com nomes, legados, sonhos. Homens e mulheres que serviram em prol da Pátria e da liberdade de todos os que sob a bandeira lusa residissem.
Entre estes nomes e memórias, feitos e sacrifícios, contam-se os do capitão Salgueiro Maia.
Nascido e criado em Castelo de Vide, no coração do Alentejo, é figura de destaque no quadro da revolução de abril. Sendo o único filho de Francisco da Luz Maia, e da sua esposa, Francisca Silvéria Salgueiro, viveu subsequentemente em Coruche e em Tomar.
Mais tarde admitido na Academia Militar, em Lisboa, e após uma primeira reprovação, viria a ser colocado na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde ascendeu a comandante de instrução e integrou uma companhia dos comandos na Guerra Colonial.
Com o início das reuniões clandestinas do Movimento das Forças Armadas, em 1973, Salgueiro Maia é nomeado Delegado de Cavalaria. É o próprio, a 25 de Abril de 1974, quem comanda a frota de blindados que viria a montar cerco aos ministérios do Terreiro do Paço, e forçaria (sob comando de Otelo Saraiva de Carvalho) a rendição de Marcello Caetano, no Quartel do Carmo – ao que se sucede a entrega da pasta do governo a António de Spínola e a escolta de Marcello Caetano ao avião que o transportaria para o exílio no Brasil.
Viria a afamar-se pelo discurso que profere durante o cortejo da Escola Prática de Cavalaria - "Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!"- e com o qual reuniu todos os 240 homens diante de si reunidos.
Salgueiro Maia cimentou, assim, uma reputação sólida na luta pelo cessar da opressão e pela conquista e garantia incondicional da liberdade, lançando as bases para a construção do Portugal moderno e livre, segundo uma constituição que segue sempre os valores da revolução.
Põe-se então, quase forçosamente, a questão: que memória se faz, atualmente, do legado de Salgueiro Maia?
Atente-se que condecoração não é um gesto por Salgueiro Maia alguma vez reclamado, exigido, ou sequer aceite – exprime-se antes o desleixo no reconhecimento da sua ação e impacto no oblívio dos ideais de abril, violando o único desejo, em vida, do revolucionário – que se esquecessem jamais os valores, o propósito, e a motivação da Revolução dos Cravos.
Tendo sido amplamente agraciados com títulos e posições de destaque militar, recusou também uma miríade de cargos, de entre os quais um assento no Conselho da Revolução.
O capitão de abril demarcou-se por, para lá de um mérito inabalável pelo seu papel na revolução, uma ampla humildade e sentido de dever para com a nação que sempre jurou servir. É na entrevista que concede a Maria Manuela Cruzeiro, em 1991, onde dissipa névoas que pairavam sobre as condições em que decorreu a Revolução, que transparece a verdadeira essência de Salgueiro Maia e a sua vivência pessoal do romper da ditadura – como em momento algum se perspectivou como herói por levar a cabo a revolução, e que a seu parecer mantinha apenas a promessa que jurara à Pátria: de a servir e proteger, sempre.
Não se exalta ou irrompe indignado sobre o mérito que lhe é ou não atribuído pelos feitos de abril, mas antes prega que não se esqueçam os valores da revolução e com que propósito foi levada a cabo – que não se esquecesse, em momento algum, que o propósito da instaurada constituição seria fundar em Portugal um estado socialista, assente sobre os valores da igualdade e liberdade, profundamente semelhantes aos da precedente Revolução Francesa (como é ainda amplamente referenciado no campo do direito constitucional).
É este o último depoimento importante que faz em vida, e provavelmente o mais exaustivo de todos, pregando o seu lema e memória como o satisfaria que ficassem gravados, sem hipérboles heróicas ou glorificações que o despersonalizam.
É sobre este pressuposto que assenta verdadeiramente a essência da questão que se colocou, num primeiro momento: em que sentido se honrou, em Portugal, a memória de uma figura mestre na construção da atual e livre sociedade?
Num país com um pressuposto, à partida, socialista, em que sentido se honra a constituição de 76, e o legado dos que permitiram a sua construção e implementação, numa Assembleia que sentou no presente ano 12 deputados de um partido político assumidamente conservador e de extrema-direita? Implora-se que se avalie a conformidade constitucional da prevalência destes partidos na Assembleia da República.
Num país que baniu, em Coimbra, as refeições sociais das Cantinas Rosas, em 2020, justifica-se o questionar do valor socialista patente na ética de governo atual.
Em que país democrático, cujas bandeiras se içaram e cravos se alevantaram pela liberdade, se aceita e se senta em Parlamento um partido que prega a democratização da castração química de todas as pessoas que recorreram a um aborto, e admite integrantes com um historial de pertença a grupos extremistas e de violência com motivações racistas, xenófobas, e de uma natureza profusamente neonazi?
A materialização do património é evidentemente um tópico problemático: a inauguração de um monumento físico, palpável, ao legado histórico consolidado por uma figura de destaque tem escusado erradamente a perpetuação prática da sua vontade como concretização e símbolo do respeito pela memória e feitos em vida do capitão.
A valorização do físico e observável acima de uma manutenção e proteção constantes dos valores da figura alvo tem promovido o esquecimento dos princípios de abril e do papel que exercem enquanto bases fundamentais de uma atual constituição defensora de uma sociedade livre e democrática.
O momento em que se erigiram estátuas e não um ensino próprio da História da Revolução, ou dos pressupostos sobre os quais se assentou abril, relembrando a tirania da ditadura e o preço exato de um governo de opressão, foi o momento em que se ofendeu a memória de Salgueiro Maia.
O momento em que se ofertou um sepulto no Panteão Nacional, rejeitado pelo próprio revolucionário, mas se definiu eternizar e gravar na educação nacional a primordialidade dos princípios sobre os quais o povo se rebelou como uma demanda extremista e imoral, foi o momento em que se perdeu Salgueiro Maia entre o legado e a memória.
Não é afirmável, sob o contexto político atual, que se tenha feito respeito ao desejo ou vontade de Salgueiro Maia, ou que se tenha feito transparecer o seu legado da única forma que pediu, e que até nesse momento se manifestou plenamente altruísta, na consciência de que estes eram valores fundamentais no estabelecimento de um Portugal cívico, livre, e defensor de todos.
O momento em que uma estátua vale mais que um ideal é e será, sempre, o momento de colapso de cada democracia.
Sobre a autora:

Andreia Pinto Martins, 19 anos.
A ex-aluna de engenharia aeronáutica, amante da escrita e da leitura nos tempos livres, trocou a serra pelo encanto coimbrense.



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