top of page
  • Ícone do Instagram Preto

Cidadania: uma perspetiva histórica

Editorial

A presente edição da Revista A Salto decide explorar a cidadania numa vertente plurifacetada. Os textos publicados refletem abordagens compostas por linhas analíticas distintas, sendo a cidadania explorada em diferentes áreas.

Atualmente, não ser cidadão de qualquer país é considerado problemático – significa não estar inserido numa comunidade, não usufruir de direitos essenciais – quase como não fazer parte da sociedade. As variadas situações envolvendo apátridas e os seus problemas humanitários ao longo dos últimos anos são uma amarga prova disto. Estes casos demonstram também que, apesar de se discutir a perda de importância da cidadania nacional, ela continua ainda a ser a base da integração social. No entanto, o conceito de cidadania nem sempre existiu. Como passou a ser tão importante?

A noção de cidadania, embora central na vida política contemporânea, pode parecer inicialmente abstrata e pouco clara. Para Dominique Schnapper, politóloga francesa, a cidadania é a fonte do vínculo social e princípio da legitimidade política (Schnapper, 2000). O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea define-a, por outro lado, como a condição ou qualidade de cidadão, membro de um estado, de uma nação…, no pleno gozo dos seus direitos políticos, cívicos e deveres para com esse Estado ou essa nação. A ideia de cidadania pressupõe a lealdade a uma comunidade política, estando hoje estreitamente ligada ao conceito de nacionalidade. Porém, a nacionalidade nem sempre pressupôs o acesso aos direitos da cidadania: por exemplo, mulheres ou analfabetos não puderam, durante muito tempo, exercer direitos políticos, mesmo que fossem considerados pertencentes à Nação. Inversamente, o atual sistema político em várias democracias permite que indivíduos estrangeiros à nação usufruam de direitos semelhantes aos dos cidadãos nacionais – por exemplo, na Constituição da República Portuguesa, o artigo 15º refere que Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português. É de referir, aliás, o recente processo de atribuição da cidadania portuguesa aos judeus sefarditas que pudessem comprovar as suas origens ibéricas. A possibilidade de aceder à cidadania é, aqui, usada como instrumento de redenção face a erros históricos, num momento de alargamento dos critérios para se ser considerado cidadão de um país.

As características e poderes da cidadania não permaneceram estáticos ao longo do tempo; na verdade, a cidadania é um conceito dinâmico, que foi sendo expandido e acompanhou as várias conquistas jurídicas, políticas e sociais dos últimos séculos.

A noção de cidadão (em grego, πολίτης [polites] ) e de cidadania é originária da Grécia Antiga, pioneira da forma de organização democrática que prossegue nos dias de hoje - apesar de com numerosas diferenças. Para Aristóteles, um dos fundadores do pensamento político (o qual expôs na sua obra Política), a cidadania não era inerente à pertença a um território. Tratava-se de um conjunto de características que permitiam ao indivíduo, o cidadão, ter as capacidades intelectuais e políticas necessárias para participar no governo e gestão da polis. Assim, os cidadãos não possuíam apenas direitos que escravos, estrangeiros ou mulheres não possuíam, como também deveres militares e políticos. Um cidadão deveria deter qualidades deliberativas, residir na polis e descender de outros cidadãos. Para além disto, era fundamental que um cidadão tivesse a capacidade de governar, mas também de ser governado. O resultado é que, durante muito tempo, o sorteio foi utilizado na atribuição de cargos políticos administrativos. Apesar de os cargos mais influentes e deliberativos serem atribuídos por eleição, o facto de se confiar uma grande parte dos cargos ao acaso demonstrava a confiança nas capacidades de cada cidadão. Nas democracias modernas, o sorteio não é sequer considerado; a cidadania foi alargada a todos, pelo que se assume que cada indivíduo tem o direito de participar na vida política, quer ao eleger como ao ser eleito. Porém, os poderes governativos acabam frequentemente por se concentrar numa elite oligárquica na qual é difícil penetrar como cidadão comum. O caso da Atenas clássica deve fazer-nos refletir sobre a necessidade de encontrar mecanismos para tornar a democracia mais participativa, ao fazer cumprir verdadeiramente os direitos da cidadania estipulados.

Evoluindo ao longo da Modernidade, a cidadania deixa de envolver apenas a polis para se tornar um elemento do Estado Nação. Esta visão da cidadania é um conceito moderno fundado pelo conflito social da Revolução Francesa, que substitui as relações sociais do absolutismo. O súbdito quebra a sua vassalagem e torna-se cidadão de uma nação. Então, os seus direitos e deveres passam a ser delimitados por um contrato social, uma Constituição. O universalismo é uma componente importante da cidadania a partir daqui – o objetivo é incluir todos os membros da comunidade. Este princípio subsiste até hoje, como podemos verificar, novamente, na Constituição Portuguesa: Artigo 12.º (Princípio da universalidade) 1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição. Esta Constituição, como muitos dos documentos jurídicos fundadores contemporâneos, baseia-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

A cidadania nasce e evolui através do conflito, institucionalizando-se no contrato social no momento de refundação do Estado. Neste sentido, cada evento histórico vem transformar e confirmá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, em particular, no continente europeu, a crise social e económica forçou os Estados a recontratualizar a relações com seus cidadãos, tendo estes obtido mais direitos sociais e económicos. As novas Constituições são reescritas num sentido inclusivo e vincadamente social, tornando-se a instrumentos para garantir que os direitos humanos e sociais seriam preservados pelo Estado. No entanto, a cidadania enfrentou após este período alguns problemas: nos anos 80 e após o fim da Guerra Fria, a ascensão do neoliberalismo alterou profundamente as relações interpessoais e com o próprio Estado. Neste período, a noção de « um cidadão, um voto » viu-se distorcida pela acumulação de capital financeiro e pelo fosso de desigualdades que se abriu no seio das sociedades.

Atualmente, a cidadania é ameaçada em várias vertentes e por diferentes conflitos em redor do mundo: desde o problema dos apátridas ao questionamento cada vez maior do papel da cidadania nacional, passando pelo surgimento de novas formas de cidadania, como a europeia. Como é possível verificar nos diversos casos de migrações ou de procura de asilo por refugiados, a necessidade de obter uma nova cidadania tem um papel central - assim se compreende a importância que este estatuto legal e humano continua a ter presentemente. Como evolui atualmente este estatuto nascido solidamente com a revolução francesa?








Referências bibliográficas:


Academia das Ciências. (2001). Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa, Portugal: Verbo

Aristóteles [2019]. Política (edição bilingue). Lisboa: Nova Vega.

Clayton, Edward. Aristotle: Politics. Online Encyclopedia of Philosophy. https://iep.utm.edu/aris-pol/. Consultado em Dezembro de 2021.

Manin, Bernard (2019). Principes du gouvernement représentatif. Paris, France: Flammarion.

Portugal (1976) Constituição da República Portuguesa - VII Revisão Constitucional [2005]. Parlamento.pt

Schnapper, Dominique. (2000) . Qu'est-ce que la citoyenneté? . Paris, France : Gallimard




 

Artigo pelos editores da Revista A Salto

Posts recentes

Ver tudo

Comentarios


newsletter (seja informado quando um artigo for publicado)

Obrigado pelo envio!

  • Instagram

Revista A Salto, 2021

bottom of page